Thursday 16 October 2008

Ficcio

A Incauta menina entrou na Estação apreciando à chegada o fresco do ar condicionado. Chamá-la-emos Aninhas, ou simplesmente A para protecção dEla e de outros como tal.

Dirigiu-se a uma maquineta e retirou a senha sem reparar que lhe retiravam, apesar da gentileza do toque, uma pequena amostra de epiteliais para efeitos de reconhecimento legal dos restos, via DNA, caso aquilo corresse mal.

Ficou A assustada perante a desmesurada fila e, julgando estar ainda na sua pequena terra Natal, Terra da Fraternidade, tão bem cantada por um cantor famoso de quem A insistentemente esquecia o nome, acercou-se da menina do balcão titubeando um “… é apenas uma dúvida pequenina”.

A incauta A não percebeu que Miss Desgraciatta estava presente, essa assassina a soldo de momento ao serviço da máfia lasagna italiana com destacamento tridimensional no Take-away da esquina, aproximando-se sorrateiramente de A, pronta que estava a usar a sua arma secreta: os olhos flamejantes mozzarella.

Miss Desgraciatta, por seu turno, não sabia da presença da Super Nada a Ver, honrosa sobrinha neta da Mulher-Maravilha, essa heroína sobejamente conhecida de todos, de quem herdou um cinto e a predisposição para penteados escabrosamente ridículos. E que bem lhe ficava o cinto no seu corpinho tamanho 52. Diligentemente acrescentado em meio quilometro de largura e cuidadosamente virado ao contrário, ficava-lhe supimpa logo abaixo do terceiro anel de gordura estomacal! Virado ao contrário, claro, porque figurava no adorno dois “WW”, o nome da tia-avó em inglês, uondar-uumã, e porque não conseguiu registar junto do RNPC (Ridículo Notário de Portugueses Carolas armados em super-heróis) nenhum nome com duas letras estrangeiras… nem dos estates. Virado o cinto ao contrário e cuidadosamente arrancadas uma perna ao primeiro “M” e duas ao segundo ficou maravilhoso, apesar de incomodativo nas arestas. Nada de preocupante, no entanto. Ali estava Super Nada a Ver, NV para os amigos, discreta e disfarçada no seu posto de vigília.

De onde estava observava os passos de A e de Miss Desgraciatta que por esta altura lançava um odor infernal a mozzarella, sinal de que tinha já a arma ocular carregada e pronta a disparar, caso A se atrevesse, como parecia, passar-lhe à frente na fila.

Do outro lado estava o Homem Barbudo, vilão execrável com o poder de hipnotizar com a barba espessa de onde lhe saíam dois olhinhos vermelhos, afinal, muito simplesmente um rato siberiano que vivia por ali agarrado às volumosas cerdas faciais e origem do seu enigmático poder.

NV continuava no seu posto vestida no seu belo ólouvar rosa fushia XXL preparada para intervir.

Aninhas entabula a sua pergunta à funcionária de olhos roxos e Miss Desgraciatta lança-lhe o seu raio Mozzarella. NV salta e tira do seu segundo anel estomacal uma fatia de pizza Margueritta lançando-a exactamente na intercepção do famigerado raio. A mozzarella colou-se à fatia tornando-se inócuo e muito saboroso.

- Não, minha menina, a sua encomenda ainda não chegou. – responde musicalmente a funcionária. Aninhas agradece, inconsciente da luta titânica que decorria entre NV e Miss Desgraciatta, aquela retirando dos seus anéis estomacais fatias e mais fatias de pizzas margueritas e interceptando os raios, esta definhando à medida que o provimento de mozzarella se ia esgotando. Também não reparava que o Homem Barbudo, ou melhor, o Rato Siberiano hipnotizava a outra funcionária tentando convencê-la a ser sua consorte, sem sorte nenhuma pois que a funcionária tinha já esposa, filhos, dois papagaios e três peixinhos dourados em casa.

Aninhas retirou-se desgostosa ao pensar que não só a sua encomenda de torresmos de Alicante ainda não tinha chegado como lhe prometera a sua cunhada brasileira, como ainda tinha que enfrentar o resto da tarde encalorada à sombra de uma azinheira que já não sabia a idade.

NV neutralizou em definitivo Miss Desgraciatta e seguiu em seguida (sim, sim. Há o seguir em seguida e o seguir depois mais tarde!) ao salvamento da funcionária casada. Atira uma última fatia de pizza na direcção da barba beligerante envolvendo o Rato num apertado abraço a fazer lembrar um belo cachorro quente, que até já ia a calhar, pois a fome já apertava, ao mesmo tempo que repara que a chuva miudinha começava a cair e iria molhar a roupa que deixara estendida…

No fim, depois de tudo limpo e arrumado, NV regressou a casa com um olhar sorridente que diria
“All in a normal day’s work”.

Diria. Diria se soubesse inglês. Como não, rematou apenas

“O cumprimento cabaz da plenitude das tarefas a que me propus em apenas mais um belo período de translação elíptica deste planeta-mãe em torno do Astro-Rei, eis tudo o que me apraz no ocaso de ainda outro e mais um ínfimo intervalo balizado de horas.”

Eu, se fosse a ela, parava de ler tanto Saramago.

4 comments:

Luísa A. said...

Sim, minha querida Nocas, o excesso de leitura de romances já prejudicou muito o pobre Quixote e a desgraçada Bovary, entre outros. Convém fazê-lo com conta, peso e medida. Ou, pelo menos, tratando-se do Saramago, acreditar firmemente que ficção É ficção. ;-D

nocas verde said...

É a costela "amaricana" dela, coitada! Além de que peso e medida parece não ter, não acha?
beijinho

ana v. said...

Nocas, este é um dos melhores textos que tenho lido ultimamente. Deliciosamente surreal.
Parabéns.

nocas verde said...

Querida Ana V.

Obrigada (corei) :)
bj