Do seu quarto ouvia os vendedores passarem.
Acordava sempre primeiro que todos e ficava uns momentos a esticar os ossos, feliz, muito feliz. Tinha, como sempre, um longo dia pela frente.
Como os Senhores não estavam, teria tempo para fazer o que há muito queria: seguir a larga Avenida até ao fim. Disseram-lhe que lá estaria o Rio. Tejo, disseram-lhe.
Na cozinha fez café.
- Bom dia, Maria José.
- Bom dia, minha senhora.
Sentaram-se as duas na grande mesa de madeira onde repousava o alguidar com a massa para o pão, o cesto da fruta e o jarro de vinho tapado com o belo naperon.
- D. Quinita… depois ensina-me a fazer estes naperons? São lindos.
A mulher riu-se. Gostava muito desta menina que lhe tinha aparecido porta dentro. Da sua alegria e traquinice. Cantava o dia todo, mesmo quando tinha que fazer os trabalhos mais duros.
O gato Chico pulou para o colo dela.
- Esse gato! Nunca o vi aproximar-se de ninguém. É arisco e mal disposto com toda a gente.
- Somos iguais, Senhora. Ele e eu.
- Selvagens? – rindo.
- Feios. – fez uma festa no focinho do bicho percorrendo com um dedo uma grande cicatriz, feia e disforme. O rabo, cortado por um cão malvado, acabava num nó esquisito.
Saiu da casa com o recado da D. Quinita de comprar peixe na Ribeira.
- Não te preocupes, menina. Vês logo os pescadores e as peixeiras.
Habituada como estava a grandes caminhadas foi de ânimo leve que se pôs ao caminho. Tirou dois tomates directamente do tomateiro e colocou-os cuidadosamente no bolso do avental. Com o lenço – o seu maior tesouro, comprado ao pitrolino com o seu primeiro dinheiro – fez um nó na cabeça e seguiu, cantando.
E, pareceu-lhe de repente, estava em frente ao Rio. Tejo, disseram-lhe.
Os miúdos brincavam na escadaria onde as ondas pequeninas batiam. Atiravam água uns aos outros e os mais afoitos atiravam-se do cais com grande gritaria. Incapaz de resistir tirou as socas e desceu os três degraus até a água lhe tocar nos dedos. As saias ficaram molhadas com uma onda maior mas não se importou.
E se eu fosse assim? E se tivesse nascido aqui e não naquele buraco imundo, seco e árido. Poderia ter vindo para aqui brincar como eles?
O som dos pescadores e das peixeiras chegou-lhe aos ouvidos. Sem medo, aproximou-se e procurou quem lhe parecesse de confiança. Um rapaz andava por ali tirando caixas de peixe que ainda saltavam equilibrando-se entre a chata e a doca para depois os colocar nas canastras das peixeiras. Aquelas depois de cheias eram diligentemente colocadas na cabeça das peixeiras que seguiam o seu caminho como se fossem artistas de circo, como Maria José tinha visto neste último Natal.
- Olha, olha! – disse o rapaz quando a viu – temos petinga nova!
As peixeiras riram.
- Olha! E é maneirinha como tu gostas, ó Zé.
Percebeu que era de si mas não fazia ideia das insinuações que fizeram.
- Quero comprar sardinhas. - enquanto o olhava. Este Zé tinha uma grande cicatriz que lhe atravessava a face, ainda mais escura que o resto da pele, torcida e negra pelo Sol com os uns olhos verdes de cor roubada ao Rio.
- Tenho aqui a mais vivinha, menina! Traga cá a sua canastra! – Zé ficou impressionado por Maria José não ter desviado os olhos. Não sabia, ela, destas lides da timidez e recolhimento femininos. Não sabia corar. Não sabia – nunca saberia – baixar os olhos.
- Não tenho canastra.
Deolinda era a casamenteira da Ribeira. Era mais que isso como viria a saber. Reparou nestes dois jovens e ofereceu-se para vender uma. As mãos gordas da Deolinda tentaram alcançar o lenço de Maria José para lhe mostrar como se fazia o farrapo mas esta esquivou-se com um não sonoro.
- Este não, senhora!
- E é arisca, Zé! É arisca. Pois não consegues levar a canastra sem farrapo, menina!
- Vocemessê não se preocupe. – arrancou uma das suas saias (a de baixo era já muito velha) e rapidamente imitou o gesto que tinha visto uma peixeira fazer.
O riso espantado de Deolinda deu-lhe a certeza que tinha feito bem e depois de entregar o dinheiro ao Zé pescador ficou parada a olhar para a canastra.
- Vem cá, pequena! Eu mostro-te como se faz. Por agora seguras com as duas mãos. Daqui a uns tempos até parir com a canastra na cabeça consegues!
Depois de agradecer seguiu o seu caminho devagar. Era difícil de equilibrar e o farrapo escorregava na seda do lenço.
- Esta é que te dava jeito, Zé! – ouviu ainda dizer.
- … sim, sim. Ainda a domestico, Mãe Linda, Vai ver…
Ouvi-os rirem-se os dois.
Ou eu a ti, pescador.
...mas näo me envergonho; porque eu sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o que lhe confiei até àquele dia.
Showing posts with label Olhos Castanhos. Show all posts
Showing posts with label Olhos Castanhos. Show all posts
Wednesday, 6 May 2009
Friday, 17 April 2009
Olhos Castanhos - O Tó
Era a única fruta a que não resistia. Saltava os muros, rastejava por baixo dos portões e apanhava os mais redondos e vermelhos.
Soube mais tarde que se chamavam tomates e que não eram considerados frutos mas continuaram a ser o seu fruto favorito.
Gostava deles maduros. Trincava-os e depois sugava o sumo delicioso sem perder uma única gota.
Na casa do Senhor havia frutos exóticos enviados das terras do ultramar com cores vivas e cheiros intensos mas ela continuava a escolher o tomate.
Quando conseguiu ter uma casa e um espacinho de terra palmilhou-o todo, cuidadosamente, de manhã, à tarde e à noite. Viu onde batia mais o Sol, onde estava mais sombra, onde o vento não chegava. Escolheu um cantinho logo à direita da escada que lhe serviria de solar, onde embalaria os filhos, onde passaria muitas e longas tardes fazendo costura, crochet ou simplesmente acariciando um gato. Iria ter um gato, decidiu.
Pegou no tomate e comeu-o com ar cerimonioso. Retirou as sementes e colocou-as no cantinho de terra escolhido.
Cresce, meu menino. Cresce. – sussurrou.
Ao lado colocou o tanque novinho em folha, de costas para o portão, para as vizinhas ao passarem não vissem a roupa que lavasse. Acreditava que a roupa com mau olhado era muito perigoso e as roupas belas dos doutores que lavava era muito preciosa.
Plantou também salsa, coentros, couve, nabos, morangos e outras coisas, tudo à volta do limoeiro que já lá estava, tudo do lado direito.
Do lado esquerdo construiu um pequeno galinheiro.
O gato encontrou-o na rua, abandonado e sujo. Levou-o para casa, deu-lhe banho com muito sabão azul e branco. O que é bom para a roupa das senhoras é bom para ti… Chico. Já nessa noite o Chico dormiu aos pés da cama, por cima do raminho de eucalipto queimado colocado debaixo do colchão, para protecção da casa.
O Tó cresceu. Deu tomates, primeiro pequenos, depois grandes, carnudos e suculentos. Deu tomates durante muitos anos.
O Chico e o Tó foram companheiros fiéis.
Os seus companheiros.
Soube mais tarde que se chamavam tomates e que não eram considerados frutos mas continuaram a ser o seu fruto favorito.
Gostava deles maduros. Trincava-os e depois sugava o sumo delicioso sem perder uma única gota.
Na casa do Senhor havia frutos exóticos enviados das terras do ultramar com cores vivas e cheiros intensos mas ela continuava a escolher o tomate.
Quando conseguiu ter uma casa e um espacinho de terra palmilhou-o todo, cuidadosamente, de manhã, à tarde e à noite. Viu onde batia mais o Sol, onde estava mais sombra, onde o vento não chegava. Escolheu um cantinho logo à direita da escada que lhe serviria de solar, onde embalaria os filhos, onde passaria muitas e longas tardes fazendo costura, crochet ou simplesmente acariciando um gato. Iria ter um gato, decidiu.
Pegou no tomate e comeu-o com ar cerimonioso. Retirou as sementes e colocou-as no cantinho de terra escolhido.
Cresce, meu menino. Cresce. – sussurrou.
Ao lado colocou o tanque novinho em folha, de costas para o portão, para as vizinhas ao passarem não vissem a roupa que lavasse. Acreditava que a roupa com mau olhado era muito perigoso e as roupas belas dos doutores que lavava era muito preciosa.
Plantou também salsa, coentros, couve, nabos, morangos e outras coisas, tudo à volta do limoeiro que já lá estava, tudo do lado direito.
Do lado esquerdo construiu um pequeno galinheiro.
O gato encontrou-o na rua, abandonado e sujo. Levou-o para casa, deu-lhe banho com muito sabão azul e branco. O que é bom para a roupa das senhoras é bom para ti… Chico. Já nessa noite o Chico dormiu aos pés da cama, por cima do raminho de eucalipto queimado colocado debaixo do colchão, para protecção da casa.
O Tó cresceu. Deu tomates, primeiro pequenos, depois grandes, carnudos e suculentos. Deu tomates durante muitos anos.
O Chico e o Tó foram companheiros fiéis.
Os seus companheiros.
Tuesday, 15 April 2008
Olhos Castanhos - 2
- Nasci numa casa com 9 irmãos… e mais alguns espalhados por aí.
- Espalhados, 'vó?
- Espalhados porque já não viviam comigo.
- Casaram?
- Não,… não sei. Foram-se embora. Fugiram à pobreza. Fugiram aos meus pais. Como eu fiz.
- Oh, 'vó! Que triste!
Olho-te. Os teus olhos são iguaizinhos aos de uma certa menina que eu fui.
- Não foi triste partir… foi triste ficar tanto tempo. – deitas a cabeça nos meus joelhos. És a primeira pessoa a quem eu conto isto.
- Não te esqueças do que te vou contar.
- E porquê, 'vó?
- Porque o esquecimento faz-nos repetir os erros. Se aprenderes com os meus, pode ser que não tenhas que sofrer tanto.
Baixaste os olhos. Aprende desde já, minha bisneta. Baixa os olhos sempre que quiseres esconder qualquer coisa. Baixa os olhos quando te zangares. Baixa os olhos quando engolires o orgulho, a raiva ou a inveja.
- Não consigo, 'vó. Não consigo aprender. Ainda ontem…
Pus-te os dedos nos lábios. Não quero que me contes. Não quero saber das vezes que esses meus olhos teus te provocaram castigos. E engoliste um suspiro.
- Porque saíste de casa? Não gostavas dos pais?
- Não gostava da miséria. Como te disse, éramos 9, mais os meus pais. Mas não tínhamos terra, nem animais, nem nada. Vivíamos de esmolas. O meu pai levava-nos para a beira da estrada pedir. Fiquei farta daquilo. Quando crescíamos, deixávamos de ter graça… já ninguém nos dava esmola. O remédio era roubar nas quintas ou servir. Fui para a beira da estrada e pedi que me levassem para Lisboa. Encontrei uma casa muito, muito bonita e pedi trabalho. E foi assim!
- Conta-me o resto, 'vó!
Beijo-te.
- Agora vamos dar de comer às meninas. Olha para elas…
As galinhas estavam displicentemente espalhadas pelo quintal. Quando 'Vó e bisneta se levantaram dos degrauzinhos que separava a casa do quintal as meninas souberam que era hora da paparoca.
'Vó e bisneta chamaram-nas e afagavam-nas enquanto despejavam a mistura nos comedouros.
- Espalhados, 'vó?
- Espalhados porque já não viviam comigo.
- Casaram?
- Não,… não sei. Foram-se embora. Fugiram à pobreza. Fugiram aos meus pais. Como eu fiz.
- Oh, 'vó! Que triste!
Olho-te. Os teus olhos são iguaizinhos aos de uma certa menina que eu fui.
- Não foi triste partir… foi triste ficar tanto tempo. – deitas a cabeça nos meus joelhos. És a primeira pessoa a quem eu conto isto.
- Não te esqueças do que te vou contar.
- E porquê, 'vó?
- Porque o esquecimento faz-nos repetir os erros. Se aprenderes com os meus, pode ser que não tenhas que sofrer tanto.
Baixaste os olhos. Aprende desde já, minha bisneta. Baixa os olhos sempre que quiseres esconder qualquer coisa. Baixa os olhos quando te zangares. Baixa os olhos quando engolires o orgulho, a raiva ou a inveja.
- Não consigo, 'vó. Não consigo aprender. Ainda ontem…
Pus-te os dedos nos lábios. Não quero que me contes. Não quero saber das vezes que esses meus olhos teus te provocaram castigos. E engoliste um suspiro.
- Porque saíste de casa? Não gostavas dos pais?
- Não gostava da miséria. Como te disse, éramos 9, mais os meus pais. Mas não tínhamos terra, nem animais, nem nada. Vivíamos de esmolas. O meu pai levava-nos para a beira da estrada pedir. Fiquei farta daquilo. Quando crescíamos, deixávamos de ter graça… já ninguém nos dava esmola. O remédio era roubar nas quintas ou servir. Fui para a beira da estrada e pedi que me levassem para Lisboa. Encontrei uma casa muito, muito bonita e pedi trabalho. E foi assim!
- Conta-me o resto, 'vó!
Beijo-te.
- Agora vamos dar de comer às meninas. Olha para elas…
As galinhas estavam displicentemente espalhadas pelo quintal. Quando 'Vó e bisneta se levantaram dos degrauzinhos que separava a casa do quintal as meninas souberam que era hora da paparoca.
'Vó e bisneta chamaram-nas e afagavam-nas enquanto despejavam a mistura nos comedouros.
Monday, 14 April 2008
Olhos Castanhos

A casa, ou melhor, o casarão, era enorme.
A partir do portão grande e belo virou à direita procurando a entrada de serviço. Viu um senhor com uma grande cesta de verduras enconstado a um gradeamento. Esperou que a criada viesse atender.
- Oh, Ti Manel! Como está?
- Dona Quinita, como está Vossemecê? Aqui estão as couves para a Senhora.
Continuaram a falar alegremente enquanto ela esperava meio escondida. De repente viram-na.
- Que queres tu daqui? - disse com voz rude o Ti Manel.
- Chega-te cá, miuda. - disse Dona Quinita.
Muito, muito a medo ela aprouximou-se. Sabia que estava suja e de roupa rasgada. Tinha fome e frio. Tentou sorrir, mas o sorriso não saía.
- Senhora, será que tem algum trabalho que uma mulher possa fazer? Vossa Mercê pode confiar em mim. Sou de confiança.
Dizia isto enquanto se aproximava de cabeça baixa.
- Afasta-te, malcheirosa! - vociferou Ti Manel - Oh, Dona Quinita, não confie nestas andrajosas! Vê-se logo o que querem. Roubar, é o que lhe digo! Roubar!
Olhou-o tentando esconder a amargura.
-Veja só, Dona Quinita... como me mata com o olhar!
- Cale-se, homem! Não vê que a garota está assustada? O que sabes fazer? Sabes cozinhar?
- ... não. Sou forte. Posso carregar o que quiser. Posso limpar os penicos (risos dos outros dois)... posso fazer o que quiser!
- É mesmo tonta esta! E tu lá achas que nesta casa se usa penicos? Achas que isto é a barraca de onde vens?
- Não, senhor! Achei que era o chiqueiro onde o senhor morava! - arrependeu-se. Baixou os olhos. Levou uma estalada do homem que a fez cair.
-Ti Manel, por Deus! - disse aflita D. Quinita.
Levantou-a e olharam-se. D. Quinita disse baixinho:
- Não digas mais nada. Afasta-te e espera este nhurro ir-se embora. - mais alto - Vai-te embora! Não tenho trabalho para ti!
Afastou-se. Depois de muita conversa Ti Manel afastou-se. Esperou que D. Quinita a procurasse com o olhar.
- Chega-te cá! Tens o lábio a deitar sangue.
Levou-a para os fundos da casa. Deu-lhe um pano molhado para limpar a ferida.
- Tens cá uma língua, tu!
Ela levantou os olhos.
- E também olhos malvados! - riu-se - ainda te dão desgostos esses olhos. - Queres trabalho? Posso deixar-te limpar o fogão e os penicos... Aqui chamam-se bordalosas... E um aviso. Fecha-me essa boca e baixa-me esses olhos. Como te chamas?
- Maria José.
Subscribe to:
Posts (Atom)