Mais um pedacinho que escrevi naquele lado.
A história completa aqui.
O parágrafo é este.
Uma boa semana para todos!
...mas näo me envergonho; porque eu sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o que lhe confiei até àquele dia.
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Monday, 14 December 2009
Friday, 13 November 2009
Ali ao lado
mais um lado solto
espero que gostem :)
óptimo fim-de-semana
Elas são três… o mundo é só um
(...)
Vi-as pela primeira vez na loja do rés-do-chão.
Vi-as por defeito de profissão. Sou cabeleireira. Olho para as mulheres e para os seus cabelos como se fossem um só, fazendo logo juízos, decidindo mentalmente o que faria, elogiando ou gritando silenciosamente o terrível trabalho das eventuais colegas.
(...)
Se cabeleireira não fosse não repararia nelas. Aliás, devo confessar que as reconheci depois pelo cabelo e não pelas suas faces.
(...)
espero que gostem :)
óptimo fim-de-semana
Elas são três… o mundo é só um
(...)
Vi-as pela primeira vez na loja do rés-do-chão.
Vi-as por defeito de profissão. Sou cabeleireira. Olho para as mulheres e para os seus cabelos como se fossem um só, fazendo logo juízos, decidindo mentalmente o que faria, elogiando ou gritando silenciosamente o terrível trabalho das eventuais colegas.
(...)
Se cabeleireira não fosse não repararia nelas. Aliás, devo confessar que as reconheci depois pelo cabelo e não pelas suas faces.
(...)
Tuesday, 6 October 2009
História de uma terra de ninguém
O F., perdido em terras de ninguém, exilado num trabalho pesado, longo, duro e solitário, escreve para matar a saudade, para se sentir próximo da família, para minguar a falta que os telefonemas não conseguem.
Deu-me este texto que com a sua permissão publiquei naquele lado.
Ide ler.
Uma óptima semana para todos
Deu-me este texto que com a sua permissão publiquei naquele lado.
Ide ler.
Uma óptima semana para todos
Monday, 7 September 2009
(agora) daquele lado.
mais um continho (1.º episódio)
http://avidaagoradestelado.wordpress.com/a-lenda-do-rei-artur/
ide lá, ide
http://avidaagoradestelado.wordpress.com/a-lenda-do-rei-artur/
ide lá, ide
Friday, 22 May 2009
(visitem a 1.ª parte... ou não)
Cumpro a promessa?
Faço um desvio na promessa, isso sim. Depois do Cara de Cu se ir embora, resmungando um até amanhã indecifrável, não soubesse eu que era o que me dizia todos os dias que havia levantamentos, arrumo as minhas pás e saio do cemitério.
Não gosta de nada, detesta os levantamentos. Eu? É a parte final de um trabalho sem fim.
Vejo as pessoas que mudam. É verdade, sim. Conheço-as. Quando as conheço.
Muitos Caras de Cu e Filhos do diabo são levantados assim, tendo por companhia o coveiro e o representante resmungão da Câmara. Outros têm advogados cheirosos, executantes das heranças. Lembro-me da de ontem. Era menina quando lhe enterrei o pai. Esteve calada, séria, nem uma lágrima lhe vi. Veio sozinha, mulher feita. Puxei-a à parte antes do Cara de Cu chegar – diz-me que não tenho estudos, que a minha tarefa é cavar, que não posso e não devo falar com os familiares – e avisei-a. O seu pai não está pronto, menina. Não olhe. A menina-mulher agradece-me com o olhar, sabe do que falo apesar da leve interrogação no olhar.
Saio do autocarro. Afinal não era o meu mas o que vinha em sentido contrário e o condutor, amiguinho como é, decide parar também, tentar ajudá-lo. Ou isso ou é aquela estúpida camaradagem de colegas de trabalho. O que vale é que trabalho apenas com o meu querido Cara de Cu. A esse, levo-o sempre pelos caminhos melhores, cheios de lama, para que suje as belas calças vincadas. Já pensei no que faria caso caísse numa das covas.
O autocarro fica para ali encostado e decido ir à taberna de beira da estrada. Vejo os passageiros do outro, um casal de namorados, uma senhora bem vestida, duas ciganas carregadas de sacos, uma mãe com dois filhos irrequietos, um mecânico (devia ser, pelo fato macaco que trazia), três estudantes alemães e mais uns quantos que não saíram do autocarro, com medo que aquela má redondeza os comesse. Mas que raio de sítio este para o autocarro avariar!
Desviei-me da minha promessa?
Deveria ter lido e destruído.
E é o que vou fazer. Apenas não no cemitério. Vou a Carcavelos, à praia de Carcavelos. Sento-me na areia, leio a carta, rasgo-a e deito os restos na água juntamente com o pó da margarida.
Entro na taberna e inalo com gosto o cheiro maduro e bolorento do vinho nas pipas, enormes, deitadas atrás do balcão.
Peço um copo de três tinto, pago e sento-me num banco comprido, de madeira velha, suja e negra do vinho derramado.
Depois de o tomar de uma só vez, tiro o saco do bolso de dentro do casaco. Aliso-o e vejo de novo a letra feminina, redonda e perfeita
Carcavelos, 1980.
Mulher bonita. Pequena, roliça, saia travada, lábios vermelhos. Lágrimas que escorrem sem as segurar, soluço contido, sem dignidade.
Veio sempre às sextas-feiras.
Só às sextas-feiras.
Todas as sextas-feiras.
Na última avisei-a – vejam – que o levantamento estava marcado para a sexta-feira seguinte.
- Obrigada. Até sempre.
Hoje percebi o que queria dizer. Não veio.
Aliso o plástico, remexo no pó, enclausurado.
Porque não veio ela hoje?
A taberneira avisa-me que o autocarro está pronto a partir. Agradeço e saio. Tome cuidado, disse-me por entre benzimentos, roçando no sinal purulento na face. Está a ver o céu? Olho para onde aponta, por trás da serra do Monsanto, magnífica. Um raio de sol rompia no meio das nuvens, dando uma tez vermelha ao céu.
- Coisa boa não se anuncia, cruzes canhoto.
- Não tenha medo, Senhora. Sou eu que encomendo as almas ao inferno e hoje não é o seu dia.
Cumpro a promessa?
Faço um desvio na promessa, isso sim. Depois do Cara de Cu se ir embora, resmungando um até amanhã indecifrável, não soubesse eu que era o que me dizia todos os dias que havia levantamentos, arrumo as minhas pás e saio do cemitério.
Não gosta de nada, detesta os levantamentos. Eu? É a parte final de um trabalho sem fim.
Vejo as pessoas que mudam. É verdade, sim. Conheço-as. Quando as conheço.
Muitos Caras de Cu e Filhos do diabo são levantados assim, tendo por companhia o coveiro e o representante resmungão da Câmara. Outros têm advogados cheirosos, executantes das heranças. Lembro-me da de ontem. Era menina quando lhe enterrei o pai. Esteve calada, séria, nem uma lágrima lhe vi. Veio sozinha, mulher feita. Puxei-a à parte antes do Cara de Cu chegar – diz-me que não tenho estudos, que a minha tarefa é cavar, que não posso e não devo falar com os familiares – e avisei-a. O seu pai não está pronto, menina. Não olhe. A menina-mulher agradece-me com o olhar, sabe do que falo apesar da leve interrogação no olhar.
Saio do autocarro. Afinal não era o meu mas o que vinha em sentido contrário e o condutor, amiguinho como é, decide parar também, tentar ajudá-lo. Ou isso ou é aquela estúpida camaradagem de colegas de trabalho. O que vale é que trabalho apenas com o meu querido Cara de Cu. A esse, levo-o sempre pelos caminhos melhores, cheios de lama, para que suje as belas calças vincadas. Já pensei no que faria caso caísse numa das covas.
O autocarro fica para ali encostado e decido ir à taberna de beira da estrada. Vejo os passageiros do outro, um casal de namorados, uma senhora bem vestida, duas ciganas carregadas de sacos, uma mãe com dois filhos irrequietos, um mecânico (devia ser, pelo fato macaco que trazia), três estudantes alemães e mais uns quantos que não saíram do autocarro, com medo que aquela má redondeza os comesse. Mas que raio de sítio este para o autocarro avariar!
Desviei-me da minha promessa?
Deveria ter lido e destruído.
E é o que vou fazer. Apenas não no cemitério. Vou a Carcavelos, à praia de Carcavelos. Sento-me na areia, leio a carta, rasgo-a e deito os restos na água juntamente com o pó da margarida.
Entro na taberna e inalo com gosto o cheiro maduro e bolorento do vinho nas pipas, enormes, deitadas atrás do balcão.
Peço um copo de três tinto, pago e sento-me num banco comprido, de madeira velha, suja e negra do vinho derramado.
Depois de o tomar de uma só vez, tiro o saco do bolso de dentro do casaco. Aliso-o e vejo de novo a letra feminina, redonda e perfeita
Carcavelos, 1980.
Mulher bonita. Pequena, roliça, saia travada, lábios vermelhos. Lágrimas que escorrem sem as segurar, soluço contido, sem dignidade.
Veio sempre às sextas-feiras.
Só às sextas-feiras.
Todas as sextas-feiras.
Na última avisei-a – vejam – que o levantamento estava marcado para a sexta-feira seguinte.
- Obrigada. Até sempre.
Hoje percebi o que queria dizer. Não veio.
Aliso o plástico, remexo no pó, enclausurado.
Porque não veio ela hoje?
A taberneira avisa-me que o autocarro está pronto a partir. Agradeço e saio. Tome cuidado, disse-me por entre benzimentos, roçando no sinal purulento na face. Está a ver o céu? Olho para onde aponta, por trás da serra do Monsanto, magnífica. Um raio de sol rompia no meio das nuvens, dando uma tez vermelha ao céu.
- Coisa boa não se anuncia, cruzes canhoto.
- Não tenha medo, Senhora. Sou eu que encomendo as almas ao inferno e hoje não é o seu dia.
Monday, 18 May 2009
D. Paula
Um dia conheci-a. Triste. Olhos mortiços.
Fui apanhada na curva da vida, dizia-me.
Ao contrário da minha própria mãe, por exemplo, vi-lhe quase sempre uma expressão alegre, voluntariosa. Amava os filhos e o marido, amava a vida e o que vivia... ou assim pensava eu.
A filha era minha conhecida. Conhecida porque não a considerava bem minha amiga. Era caprichosa. E mimada. Achava eu.
Um dia, tinha perto de quinze anos, fui lá a casa. Gostava da D. Paula eu.
A filha não estava.
Gostava de mim a D. Paula. Achou-me uma mulherzinha e deu-se, nesse dia, por entre chávenas de chá, a minha primeira conversa de mulherzinha.
Não nasci para ter marido, atirou assim. Nem filhos. Nasci para viver sozinha, para estar sozinha.
Casar, ter os meus filhos, contentar-me com um emprego de porcaria, uma vida de porcaria. Foi um erro. Foi tudo um erro.
E sabes o pior? Criei dois monstros! Criei um marido que se acha o melhor. Porquê? Porque lhe digo isso todos os dias. Os meus filhos? Porque os amo mais que tudo, mais que a vida. Porque os convenço que somos todos maravilhosos. E quem me convence a mim? Quem me diz que sou boa? Ninguém. Porque não sou, sabes.
Fiquei estarrecida. Tanta confiança me demonstrava. A mim, sempre tão medrosa e insegura e estupidamente modesta.
Não me olhes assim minha querida, vendo-me de chávena parada no ar. É verdade. Construo a mentira para todos e sou muito convincente nisso.
A verdade, minha querida, é que não nasci para ser casada. Não nasci para ser mãe. Não nasci para viver com gente.
Eu merecia uma vida melhor. Eu merecia um marido melhor e uns filhos melhores.
Mas também os meus filhos e o meu marido mereciam alguém melhor.
A conversa não acabou com grandes conselhos sobre a minha vida ou o meu futuro, porque não tinha nenhuns.
Apenas foi a minha primeira conversa de cozinha... de mulherzinha. De um mundo que não conhecia. O da mentira piedosa. Da mentira que às vezes as mães, mulheres, heroínas, vencidas da vida, recorrem. Daquelas tão profundas, sabem?, que descobrimos que não podemos contar a ninguém. Sem querer, tornei-me amiga daquela colega – confesso – para poder estar mais próxima da D. Paula. E depois confesso também , tornei-me mis atenta s suas reacções. E vi-lhe, depois, só depois de já saber, tantas vezes os olhos trites que disfarçava sob o cansaço. O sorriso que escondia as lágrimas, o carinho solitário.
Um dia ganhei coragem e perguntei-lhe porque não se desfazia daquilo tudo? Porque não procurava uma vida melhor, que tinha direito, sabe?
Sei, minha querida, claro que sei. E sei também que não conseguiria. Esta casa, apesar de não saber, precisa de mim. Fui eu que criei esta situação. Fui eu.
E, depois, minha querida, se apenas por um dia, um minuto, alguém descobrir que eu sou miseravelmente infeliz, se alguém sequer desconfiar, vai tornar inútil todo estes anos de fingimento e de dor atroz, não achas?
Concordei com ela.
De todos os que me afastei quando mudei de casa foi a D. Paula de quem senti mais falta.
Convidei-a para o meu casamento e fui a única que percebi porque chorou tanto. E não disse a ninguém.
Porque conto isto hoje?
Porque ela mudou-se de terra, o marido deixou-a, disse que achou alguém mais novo mas não melhor, os filhos estão também casados e cada um com a sua vida,
ela?
Disse-me que estava sozinha, de olhos sorridentes. Finalmente sozinha… e foram as palavras mais felizes que lhe ouvi alguma vez dizer.
Porque o nome é inventado.
Porque lhe pedi.
Podes escrever sim. Mas não te preocupes, disse-me. A minha história é tão mirabolante que ninguém acreditará nela. Dirão todos que é mais uma daquelas tuas histórias.
Fui apanhada na curva da vida, dizia-me.
Ao contrário da minha própria mãe, por exemplo, vi-lhe quase sempre uma expressão alegre, voluntariosa. Amava os filhos e o marido, amava a vida e o que vivia... ou assim pensava eu.
A filha era minha conhecida. Conhecida porque não a considerava bem minha amiga. Era caprichosa. E mimada. Achava eu.
Um dia, tinha perto de quinze anos, fui lá a casa. Gostava da D. Paula eu.
A filha não estava.
Gostava de mim a D. Paula. Achou-me uma mulherzinha e deu-se, nesse dia, por entre chávenas de chá, a minha primeira conversa de mulherzinha.
Não nasci para ter marido, atirou assim. Nem filhos. Nasci para viver sozinha, para estar sozinha.
Casar, ter os meus filhos, contentar-me com um emprego de porcaria, uma vida de porcaria. Foi um erro. Foi tudo um erro.
E sabes o pior? Criei dois monstros! Criei um marido que se acha o melhor. Porquê? Porque lhe digo isso todos os dias. Os meus filhos? Porque os amo mais que tudo, mais que a vida. Porque os convenço que somos todos maravilhosos. E quem me convence a mim? Quem me diz que sou boa? Ninguém. Porque não sou, sabes.
Fiquei estarrecida. Tanta confiança me demonstrava. A mim, sempre tão medrosa e insegura e estupidamente modesta.
Não me olhes assim minha querida, vendo-me de chávena parada no ar. É verdade. Construo a mentira para todos e sou muito convincente nisso.
A verdade, minha querida, é que não nasci para ser casada. Não nasci para ser mãe. Não nasci para viver com gente.
Eu merecia uma vida melhor. Eu merecia um marido melhor e uns filhos melhores.
Mas também os meus filhos e o meu marido mereciam alguém melhor.
A conversa não acabou com grandes conselhos sobre a minha vida ou o meu futuro, porque não tinha nenhuns.
Apenas foi a minha primeira conversa de cozinha... de mulherzinha. De um mundo que não conhecia. O da mentira piedosa. Da mentira que às vezes as mães, mulheres, heroínas, vencidas da vida, recorrem. Daquelas tão profundas, sabem?, que descobrimos que não podemos contar a ninguém. Sem querer, tornei-me amiga daquela colega – confesso – para poder estar mais próxima da D. Paula. E depois confesso também , tornei-me mis atenta s suas reacções. E vi-lhe, depois, só depois de já saber, tantas vezes os olhos trites que disfarçava sob o cansaço. O sorriso que escondia as lágrimas, o carinho solitário.
Um dia ganhei coragem e perguntei-lhe porque não se desfazia daquilo tudo? Porque não procurava uma vida melhor, que tinha direito, sabe?
Sei, minha querida, claro que sei. E sei também que não conseguiria. Esta casa, apesar de não saber, precisa de mim. Fui eu que criei esta situação. Fui eu.
E, depois, minha querida, se apenas por um dia, um minuto, alguém descobrir que eu sou miseravelmente infeliz, se alguém sequer desconfiar, vai tornar inútil todo estes anos de fingimento e de dor atroz, não achas?
Concordei com ela.
De todos os que me afastei quando mudei de casa foi a D. Paula de quem senti mais falta.
Convidei-a para o meu casamento e fui a única que percebi porque chorou tanto. E não disse a ninguém.
Porque conto isto hoje?
Porque ela mudou-se de terra, o marido deixou-a, disse que achou alguém mais novo mas não melhor, os filhos estão também casados e cada um com a sua vida,
ela?
Disse-me que estava sozinha, de olhos sorridentes. Finalmente sozinha… e foram as palavras mais felizes que lhe ouvi alguma vez dizer.
Porque o nome é inventado.
Porque lhe pedi.
Podes escrever sim. Mas não te preocupes, disse-me. A minha história é tão mirabolante que ninguém acreditará nela. Dirão todos que é mais uma daquelas tuas histórias.
Wednesday, 6 May 2009
Olhos Castanhos - Tejo
Do seu quarto ouvia os vendedores passarem.
Acordava sempre primeiro que todos e ficava uns momentos a esticar os ossos, feliz, muito feliz. Tinha, como sempre, um longo dia pela frente.
Como os Senhores não estavam, teria tempo para fazer o que há muito queria: seguir a larga Avenida até ao fim. Disseram-lhe que lá estaria o Rio. Tejo, disseram-lhe.
Na cozinha fez café.
- Bom dia, Maria José.
- Bom dia, minha senhora.
Sentaram-se as duas na grande mesa de madeira onde repousava o alguidar com a massa para o pão, o cesto da fruta e o jarro de vinho tapado com o belo naperon.
- D. Quinita… depois ensina-me a fazer estes naperons? São lindos.
A mulher riu-se. Gostava muito desta menina que lhe tinha aparecido porta dentro. Da sua alegria e traquinice. Cantava o dia todo, mesmo quando tinha que fazer os trabalhos mais duros.
O gato Chico pulou para o colo dela.
- Esse gato! Nunca o vi aproximar-se de ninguém. É arisco e mal disposto com toda a gente.
- Somos iguais, Senhora. Ele e eu.
- Selvagens? – rindo.
- Feios. – fez uma festa no focinho do bicho percorrendo com um dedo uma grande cicatriz, feia e disforme. O rabo, cortado por um cão malvado, acabava num nó esquisito.
Saiu da casa com o recado da D. Quinita de comprar peixe na Ribeira.
- Não te preocupes, menina. Vês logo os pescadores e as peixeiras.
Habituada como estava a grandes caminhadas foi de ânimo leve que se pôs ao caminho. Tirou dois tomates directamente do tomateiro e colocou-os cuidadosamente no bolso do avental. Com o lenço – o seu maior tesouro, comprado ao pitrolino com o seu primeiro dinheiro – fez um nó na cabeça e seguiu, cantando.
E, pareceu-lhe de repente, estava em frente ao Rio. Tejo, disseram-lhe.
Os miúdos brincavam na escadaria onde as ondas pequeninas batiam. Atiravam água uns aos outros e os mais afoitos atiravam-se do cais com grande gritaria. Incapaz de resistir tirou as socas e desceu os três degraus até a água lhe tocar nos dedos. As saias ficaram molhadas com uma onda maior mas não se importou.
E se eu fosse assim? E se tivesse nascido aqui e não naquele buraco imundo, seco e árido. Poderia ter vindo para aqui brincar como eles?
O som dos pescadores e das peixeiras chegou-lhe aos ouvidos. Sem medo, aproximou-se e procurou quem lhe parecesse de confiança. Um rapaz andava por ali tirando caixas de peixe que ainda saltavam equilibrando-se entre a chata e a doca para depois os colocar nas canastras das peixeiras. Aquelas depois de cheias eram diligentemente colocadas na cabeça das peixeiras que seguiam o seu caminho como se fossem artistas de circo, como Maria José tinha visto neste último Natal.
- Olha, olha! – disse o rapaz quando a viu – temos petinga nova!
As peixeiras riram.
- Olha! E é maneirinha como tu gostas, ó Zé.
Percebeu que era de si mas não fazia ideia das insinuações que fizeram.
- Quero comprar sardinhas. - enquanto o olhava. Este Zé tinha uma grande cicatriz que lhe atravessava a face, ainda mais escura que o resto da pele, torcida e negra pelo Sol com os uns olhos verdes de cor roubada ao Rio.
- Tenho aqui a mais vivinha, menina! Traga cá a sua canastra! – Zé ficou impressionado por Maria José não ter desviado os olhos. Não sabia, ela, destas lides da timidez e recolhimento femininos. Não sabia corar. Não sabia – nunca saberia – baixar os olhos.
- Não tenho canastra.
Deolinda era a casamenteira da Ribeira. Era mais que isso como viria a saber. Reparou nestes dois jovens e ofereceu-se para vender uma. As mãos gordas da Deolinda tentaram alcançar o lenço de Maria José para lhe mostrar como se fazia o farrapo mas esta esquivou-se com um não sonoro.
- Este não, senhora!
- E é arisca, Zé! É arisca. Pois não consegues levar a canastra sem farrapo, menina!
- Vocemessê não se preocupe. – arrancou uma das suas saias (a de baixo era já muito velha) e rapidamente imitou o gesto que tinha visto uma peixeira fazer.
O riso espantado de Deolinda deu-lhe a certeza que tinha feito bem e depois de entregar o dinheiro ao Zé pescador ficou parada a olhar para a canastra.
- Vem cá, pequena! Eu mostro-te como se faz. Por agora seguras com as duas mãos. Daqui a uns tempos até parir com a canastra na cabeça consegues!
Depois de agradecer seguiu o seu caminho devagar. Era difícil de equilibrar e o farrapo escorregava na seda do lenço.
- Esta é que te dava jeito, Zé! – ouviu ainda dizer.
- … sim, sim. Ainda a domestico, Mãe Linda, Vai ver…
Ouvi-os rirem-se os dois.
Ou eu a ti, pescador.
Acordava sempre primeiro que todos e ficava uns momentos a esticar os ossos, feliz, muito feliz. Tinha, como sempre, um longo dia pela frente.
Como os Senhores não estavam, teria tempo para fazer o que há muito queria: seguir a larga Avenida até ao fim. Disseram-lhe que lá estaria o Rio. Tejo, disseram-lhe.
Na cozinha fez café.
- Bom dia, Maria José.
- Bom dia, minha senhora.
Sentaram-se as duas na grande mesa de madeira onde repousava o alguidar com a massa para o pão, o cesto da fruta e o jarro de vinho tapado com o belo naperon.
- D. Quinita… depois ensina-me a fazer estes naperons? São lindos.
A mulher riu-se. Gostava muito desta menina que lhe tinha aparecido porta dentro. Da sua alegria e traquinice. Cantava o dia todo, mesmo quando tinha que fazer os trabalhos mais duros.
O gato Chico pulou para o colo dela.
- Esse gato! Nunca o vi aproximar-se de ninguém. É arisco e mal disposto com toda a gente.
- Somos iguais, Senhora. Ele e eu.
- Selvagens? – rindo.
- Feios. – fez uma festa no focinho do bicho percorrendo com um dedo uma grande cicatriz, feia e disforme. O rabo, cortado por um cão malvado, acabava num nó esquisito.
Saiu da casa com o recado da D. Quinita de comprar peixe na Ribeira.
- Não te preocupes, menina. Vês logo os pescadores e as peixeiras.
Habituada como estava a grandes caminhadas foi de ânimo leve que se pôs ao caminho. Tirou dois tomates directamente do tomateiro e colocou-os cuidadosamente no bolso do avental. Com o lenço – o seu maior tesouro, comprado ao pitrolino com o seu primeiro dinheiro – fez um nó na cabeça e seguiu, cantando.
E, pareceu-lhe de repente, estava em frente ao Rio. Tejo, disseram-lhe.
Os miúdos brincavam na escadaria onde as ondas pequeninas batiam. Atiravam água uns aos outros e os mais afoitos atiravam-se do cais com grande gritaria. Incapaz de resistir tirou as socas e desceu os três degraus até a água lhe tocar nos dedos. As saias ficaram molhadas com uma onda maior mas não se importou.
E se eu fosse assim? E se tivesse nascido aqui e não naquele buraco imundo, seco e árido. Poderia ter vindo para aqui brincar como eles?
O som dos pescadores e das peixeiras chegou-lhe aos ouvidos. Sem medo, aproximou-se e procurou quem lhe parecesse de confiança. Um rapaz andava por ali tirando caixas de peixe que ainda saltavam equilibrando-se entre a chata e a doca para depois os colocar nas canastras das peixeiras. Aquelas depois de cheias eram diligentemente colocadas na cabeça das peixeiras que seguiam o seu caminho como se fossem artistas de circo, como Maria José tinha visto neste último Natal.
- Olha, olha! – disse o rapaz quando a viu – temos petinga nova!
As peixeiras riram.
- Olha! E é maneirinha como tu gostas, ó Zé.
Percebeu que era de si mas não fazia ideia das insinuações que fizeram.
- Quero comprar sardinhas. - enquanto o olhava. Este Zé tinha uma grande cicatriz que lhe atravessava a face, ainda mais escura que o resto da pele, torcida e negra pelo Sol com os uns olhos verdes de cor roubada ao Rio.
- Tenho aqui a mais vivinha, menina! Traga cá a sua canastra! – Zé ficou impressionado por Maria José não ter desviado os olhos. Não sabia, ela, destas lides da timidez e recolhimento femininos. Não sabia corar. Não sabia – nunca saberia – baixar os olhos.
- Não tenho canastra.
Deolinda era a casamenteira da Ribeira. Era mais que isso como viria a saber. Reparou nestes dois jovens e ofereceu-se para vender uma. As mãos gordas da Deolinda tentaram alcançar o lenço de Maria José para lhe mostrar como se fazia o farrapo mas esta esquivou-se com um não sonoro.
- Este não, senhora!
- E é arisca, Zé! É arisca. Pois não consegues levar a canastra sem farrapo, menina!
- Vocemessê não se preocupe. – arrancou uma das suas saias (a de baixo era já muito velha) e rapidamente imitou o gesto que tinha visto uma peixeira fazer.
O riso espantado de Deolinda deu-lhe a certeza que tinha feito bem e depois de entregar o dinheiro ao Zé pescador ficou parada a olhar para a canastra.
- Vem cá, pequena! Eu mostro-te como se faz. Por agora seguras com as duas mãos. Daqui a uns tempos até parir com a canastra na cabeça consegues!
Depois de agradecer seguiu o seu caminho devagar. Era difícil de equilibrar e o farrapo escorregava na seda do lenço.
- Esta é que te dava jeito, Zé! – ouviu ainda dizer.
- … sim, sim. Ainda a domestico, Mãe Linda, Vai ver…
Ouvi-os rirem-se os dois.
Ou eu a ti, pescador.
Friday, 17 April 2009
Olhos Castanhos - O Tó
Era a única fruta a que não resistia. Saltava os muros, rastejava por baixo dos portões e apanhava os mais redondos e vermelhos.
Soube mais tarde que se chamavam tomates e que não eram considerados frutos mas continuaram a ser o seu fruto favorito.
Gostava deles maduros. Trincava-os e depois sugava o sumo delicioso sem perder uma única gota.
Na casa do Senhor havia frutos exóticos enviados das terras do ultramar com cores vivas e cheiros intensos mas ela continuava a escolher o tomate.
Quando conseguiu ter uma casa e um espacinho de terra palmilhou-o todo, cuidadosamente, de manhã, à tarde e à noite. Viu onde batia mais o Sol, onde estava mais sombra, onde o vento não chegava. Escolheu um cantinho logo à direita da escada que lhe serviria de solar, onde embalaria os filhos, onde passaria muitas e longas tardes fazendo costura, crochet ou simplesmente acariciando um gato. Iria ter um gato, decidiu.
Pegou no tomate e comeu-o com ar cerimonioso. Retirou as sementes e colocou-as no cantinho de terra escolhido.
Cresce, meu menino. Cresce. – sussurrou.
Ao lado colocou o tanque novinho em folha, de costas para o portão, para as vizinhas ao passarem não vissem a roupa que lavasse. Acreditava que a roupa com mau olhado era muito perigoso e as roupas belas dos doutores que lavava era muito preciosa.
Plantou também salsa, coentros, couve, nabos, morangos e outras coisas, tudo à volta do limoeiro que já lá estava, tudo do lado direito.
Do lado esquerdo construiu um pequeno galinheiro.
O gato encontrou-o na rua, abandonado e sujo. Levou-o para casa, deu-lhe banho com muito sabão azul e branco. O que é bom para a roupa das senhoras é bom para ti… Chico. Já nessa noite o Chico dormiu aos pés da cama, por cima do raminho de eucalipto queimado colocado debaixo do colchão, para protecção da casa.
O Tó cresceu. Deu tomates, primeiro pequenos, depois grandes, carnudos e suculentos. Deu tomates durante muitos anos.
O Chico e o Tó foram companheiros fiéis.
Os seus companheiros.
Soube mais tarde que se chamavam tomates e que não eram considerados frutos mas continuaram a ser o seu fruto favorito.
Gostava deles maduros. Trincava-os e depois sugava o sumo delicioso sem perder uma única gota.
Na casa do Senhor havia frutos exóticos enviados das terras do ultramar com cores vivas e cheiros intensos mas ela continuava a escolher o tomate.
Quando conseguiu ter uma casa e um espacinho de terra palmilhou-o todo, cuidadosamente, de manhã, à tarde e à noite. Viu onde batia mais o Sol, onde estava mais sombra, onde o vento não chegava. Escolheu um cantinho logo à direita da escada que lhe serviria de solar, onde embalaria os filhos, onde passaria muitas e longas tardes fazendo costura, crochet ou simplesmente acariciando um gato. Iria ter um gato, decidiu.
Pegou no tomate e comeu-o com ar cerimonioso. Retirou as sementes e colocou-as no cantinho de terra escolhido.
Cresce, meu menino. Cresce. – sussurrou.
Ao lado colocou o tanque novinho em folha, de costas para o portão, para as vizinhas ao passarem não vissem a roupa que lavasse. Acreditava que a roupa com mau olhado era muito perigoso e as roupas belas dos doutores que lavava era muito preciosa.
Plantou também salsa, coentros, couve, nabos, morangos e outras coisas, tudo à volta do limoeiro que já lá estava, tudo do lado direito.
Do lado esquerdo construiu um pequeno galinheiro.
O gato encontrou-o na rua, abandonado e sujo. Levou-o para casa, deu-lhe banho com muito sabão azul e branco. O que é bom para a roupa das senhoras é bom para ti… Chico. Já nessa noite o Chico dormiu aos pés da cama, por cima do raminho de eucalipto queimado colocado debaixo do colchão, para protecção da casa.
O Tó cresceu. Deu tomates, primeiro pequenos, depois grandes, carnudos e suculentos. Deu tomates durante muitos anos.
O Chico e o Tó foram companheiros fiéis.
Os seus companheiros.
Tuesday, 31 March 2009
Conto - recta final
A festa era ruidosa., como se quer de uma festa, certo?
Foi para a pista dançar e não se importou de o fazer sozinha. Gostava de estar sozinha. Mesmo ali, no meio de tanta gente, entre empurrões de movimentos maiores que o espaço permitia, mesmo ali com o barulho ensurdecedor ela sentiu-se sozinha.
E gostou.
A Clara chama-a para uma bebida.
Entre gritos consegue explicar que quer apenas uma coca-cola. Só uma coca-cola, sem mais nada.
Recorda que os tempos seguintes àquele dia não foram pacíficos. Muita tristeza, amargura, ódio e choro. Muito choro.
- Minha querida – dizia-lhe a mãe – chora o que quiseres, enquanto quiseres. Grita a raiva que tens dentro de ti enquanto precisares. Toma um chá. Esta erva acalma.
E lentamente afagava-lhe os cabelos enquanto sussurrava sons incompreensíveis, rogando às luzes que ajudassem a sua querida Doce a encontrar a paz.
A clara regressa com a coca-cola e sentam-se as duas rindo. Rindo como duas adolescentes quase mulheres merecem rir. Sem compromissos, sem amarguras.
Um rapaz aproxima-se e, com gestos, pergunta se pode sentar-se. A conversa é muito escassa e cheio de risos pelas repetições e pelas frases que tem que ser ditas ao ouvido.
Pensa que é giro e aceita o seu convite para dançar um “slow”.
Agarrados – dança bem, ele – sussurra-lhe que já a estava a observar, que era muito gira e pergunta-lhe o nome.
- Cândida. – olhar profundo pela proximidade e pela firmeza nas palavras que se seguiam, sempre, agora – mas só de nome.
Foi para a pista dançar e não se importou de o fazer sozinha. Gostava de estar sozinha. Mesmo ali, no meio de tanta gente, entre empurrões de movimentos maiores que o espaço permitia, mesmo ali com o barulho ensurdecedor ela sentiu-se sozinha.
E gostou.
A Clara chama-a para uma bebida.
Entre gritos consegue explicar que quer apenas uma coca-cola. Só uma coca-cola, sem mais nada.
Recorda que os tempos seguintes àquele dia não foram pacíficos. Muita tristeza, amargura, ódio e choro. Muito choro.
- Minha querida – dizia-lhe a mãe – chora o que quiseres, enquanto quiseres. Grita a raiva que tens dentro de ti enquanto precisares. Toma um chá. Esta erva acalma.
E lentamente afagava-lhe os cabelos enquanto sussurrava sons incompreensíveis, rogando às luzes que ajudassem a sua querida Doce a encontrar a paz.
A clara regressa com a coca-cola e sentam-se as duas rindo. Rindo como duas adolescentes quase mulheres merecem rir. Sem compromissos, sem amarguras.
Um rapaz aproxima-se e, com gestos, pergunta se pode sentar-se. A conversa é muito escassa e cheio de risos pelas repetições e pelas frases que tem que ser ditas ao ouvido.
Pensa que é giro e aceita o seu convite para dançar um “slow”.
Agarrados – dança bem, ele – sussurra-lhe que já a estava a observar, que era muito gira e pergunta-lhe o nome.
- Cândida. – olhar profundo pela proximidade e pela firmeza nas palavras que se seguiam, sempre, agora – mas só de nome.
Wednesday, 7 January 2009
Bom Ano, Wouddabe!
Saúdo-a com um abraço apertado, porque ela não gosta de abraços e a mim permite que o faça, de cara torcida e um humpf engasgado.
Cara fechada como sempre porque o alto dos seus quinze anos não lhe permitem sorrir.
- queres contar-me alguma coisa? Faz-me o favor de me beijar, menina, que a sua mãe não criou nenhuma mal-educada.
- Só tu, realmente! (…) pronto, já está! O que aconteceu? O que aconteceu, dizes tu? É por isso que te detesto, pá! E achas que precisa de acontecer alguma coisa a mim – bate com força no peito – para estar assim? Só o viver é mau! A crise! A escola! Em casa! O trânsito! Os transportes! – pausa teatral enfrentando-me o olhar – queres que continue? Queres?
- Pois, é verdade. Mas e não ias passar o fim de ano com o … teu novo namorado? Deve ter sido divertido, não?
- Foi, foi. Esta coisa apanhou-me de surpresa. Pensei que por esta altura já teríamos terminado, sabes? Ele na Nazaré, eu em Lisboa. Mas não! E somos tão diferentes! Acreditas que ele não quer ir para a faculdade? Não quer! Não é que não possa ou não tenha inteligência, simplesmente não-quer-ir! É impressionante! Quer acabar o décimo segundo para ir trabalhar. É impressionante!
- E os dois? Como estão?
- Somos tão diferentes! Eu quero viajar, aprender, viver, conhecer coisas novas, pessoas novas, experimentar… ele quer ser feliz. Feliz! É o que ele diz sempre. Feliz! Achas normal?
As palavras são expulsas com ferocidade, raiva, sangue novo. Aguardo eu, faço eu agora uma pausa teatral.
- E os dois – enfatizo – Como estão?
Fita-me de olhos muito abertos. Vejo-lhe a lágrima detestável aparecer.
- Achas possível amar?
- Sabes que sim.
- Pois, casal de pombinhos e tal! humpf! Achas possível eu amá-lo. É que eu não quero, sabes bem! Não quero mesmo.
O trânsito ajuda. Estamos sozinhas e paradas na ponte. Ficamos em silêncio.
- Tinha saudades tuas.
- Eu também.
- E a tua passagem de ano?
- Calma, claro. Em casa como F. e as Crias.
- Apanhei uma tosga descomunal. – olha-me recuperando a raiva – sabes que ele não bebe? Não bebe! Diz que não gosta do que a bebida faz. Diz que gosta da vida que tem e de sentir tudo o que vive! Achas normal? – silêncio – mas foi um querido… no dia seguinte tratou-me e tudo. Quando é que voltas às tuas passagens de ano, hã? Lembras-te? Até às tantas.
- Muito, muito depois de adormeceres cansada ao meu lado. - rimos - é bom estar apaixonada, não é? Confessa, vá!
- É. - os olhos brilham - é bom, sim.
(continua)
Cara fechada como sempre porque o alto dos seus quinze anos não lhe permitem sorrir.
- queres contar-me alguma coisa? Faz-me o favor de me beijar, menina, que a sua mãe não criou nenhuma mal-educada.
- Só tu, realmente! (…) pronto, já está! O que aconteceu? O que aconteceu, dizes tu? É por isso que te detesto, pá! E achas que precisa de acontecer alguma coisa a mim – bate com força no peito – para estar assim? Só o viver é mau! A crise! A escola! Em casa! O trânsito! Os transportes! – pausa teatral enfrentando-me o olhar – queres que continue? Queres?
- Pois, é verdade. Mas e não ias passar o fim de ano com o … teu novo namorado? Deve ter sido divertido, não?
- Foi, foi. Esta coisa apanhou-me de surpresa. Pensei que por esta altura já teríamos terminado, sabes? Ele na Nazaré, eu em Lisboa. Mas não! E somos tão diferentes! Acreditas que ele não quer ir para a faculdade? Não quer! Não é que não possa ou não tenha inteligência, simplesmente não-quer-ir! É impressionante! Quer acabar o décimo segundo para ir trabalhar. É impressionante!
- E os dois? Como estão?
- Somos tão diferentes! Eu quero viajar, aprender, viver, conhecer coisas novas, pessoas novas, experimentar… ele quer ser feliz. Feliz! É o que ele diz sempre. Feliz! Achas normal?
As palavras são expulsas com ferocidade, raiva, sangue novo. Aguardo eu, faço eu agora uma pausa teatral.
- E os dois – enfatizo – Como estão?
Fita-me de olhos muito abertos. Vejo-lhe a lágrima detestável aparecer.
- Achas possível amar?
- Sabes que sim.
- Pois, casal de pombinhos e tal! humpf! Achas possível eu amá-lo. É que eu não quero, sabes bem! Não quero mesmo.
O trânsito ajuda. Estamos sozinhas e paradas na ponte. Ficamos em silêncio.
- Tinha saudades tuas.
- Eu também.
- E a tua passagem de ano?
- Calma, claro. Em casa como F. e as Crias.
- Apanhei uma tosga descomunal. – olha-me recuperando a raiva – sabes que ele não bebe? Não bebe! Diz que não gosta do que a bebida faz. Diz que gosta da vida que tem e de sentir tudo o que vive! Achas normal? – silêncio – mas foi um querido… no dia seguinte tratou-me e tudo. Quando é que voltas às tuas passagens de ano, hã? Lembras-te? Até às tantas.
- Muito, muito depois de adormeceres cansada ao meu lado. - rimos - é bom estar apaixonada, não é? Confessa, vá!
- É. - os olhos brilham - é bom, sim.
(continua)
Monday, 10 November 2008
O dia vai longo e gosto do que faço. Se fosse novo, como alguns dos gaiatos que daqui expulso, dizia que era gótico. Porque gosto da morte. Não gosto que as pessoas morram, não gosto de ver os seus rostos enquanto aguardo a minha vez de entrar em cena, mas gosto de todo o resto.
Gosto de andar por aqui e ouvi-los falar.
Não pensem que sou louco, não os oiço, oiço falar, mas imagino-os falar a partir dos funerais que têm e das campas que lhes constroem.
O que faço eu aqui? Levanto campas. Só isso. Nada de mais, sem misticismo nenhum, sem pesar nem derrotismos. Não sou daqueles que queriam ser isto ou aquilo e acabam para aqui largados, “caras de cus” sem eira nem beira.
Também não sou um errante ou artista ou até – como dizem também os gaiatos – um vampiro que bebe o sangue dos corpos, mais ou menos como um guloso que trabalha numa pastelaria. Se eles soubessem, seria mais parecido um guloso trabalhar numa loja de parafusos.
É que os mortos, quando para aqui vêem estão limpos de sangue. Se fosse vampiro não era por aqui que me safava, não.
O que sou, afinal? Isso é outra história. Fui o que fui, pode não interessar, que provocou o que sou, que não interessa mesmo. O que interessa é onde vou.
Vou a Algés apanhar o comboio para a praia de Carcavelos. Porque hoje levantei um corpo que tinha uma carta propositadamente embrulhada em plástico grosso para resistir os 5 anos da praxe. Na carta apenas um “Carcavelos, 1980” e um pó que em tempos foi uma margarida. Estava lá nesse dia.
Hoje não veio. Levantei o corpo sozinho. Sozinho mais o representante da Câmara que me instruiu para o fazer seguir para “aquele lado”.
Este novo representante é um moço novo. Este sim, um verdadeiro “cara de cu”. Destruído dia a dia pelo trabalho que não gosta, queixa-se todos os dias dos estudos que fez, do que estava destinado a ser, para ali abandonado junto a um coveiro palerma que fala com os mortos.
Hoje não veio mas lembro-me muito bem dela. Vi-a por a carta e a margarida num saco muito grosso e perguntou-me se aquilo ia resistir 5 anos. Acenei-lhe que sim.
Ao contrário do que o Cara de Cu pensa a carta não foi para o outro lado com as ossadas. Roubei-a e levo-a para a ler. Foi ela que me pediu.
- Isto resiste 5 anos, meu senhor?
- Resiste sim, minha senhora.
- De hoje a 5 anos não vou estar cá. Pegue nela, leia-a e destrua-a.
- Minha senhora…
Tal como num filme, daqueles detestáveis com mulheres enigmáticas, ela pediu-me segredo. E eu guardei.
E agora cumpro a sua promessa. O que eu não esperava era uma avaria no autocarro em plena Estrada da Circunvalação. Meia Hora, que raios! Mas está bem. Não tenho propriamente uma mulher quente (ou até uma fria, que agora também dava jeito) à minha espera…
Gosto de andar por aqui e ouvi-los falar.
Não pensem que sou louco, não os oiço, oiço falar, mas imagino-os falar a partir dos funerais que têm e das campas que lhes constroem.
O que faço eu aqui? Levanto campas. Só isso. Nada de mais, sem misticismo nenhum, sem pesar nem derrotismos. Não sou daqueles que queriam ser isto ou aquilo e acabam para aqui largados, “caras de cus” sem eira nem beira.
Também não sou um errante ou artista ou até – como dizem também os gaiatos – um vampiro que bebe o sangue dos corpos, mais ou menos como um guloso que trabalha numa pastelaria. Se eles soubessem, seria mais parecido um guloso trabalhar numa loja de parafusos.
É que os mortos, quando para aqui vêem estão limpos de sangue. Se fosse vampiro não era por aqui que me safava, não.
O que sou, afinal? Isso é outra história. Fui o que fui, pode não interessar, que provocou o que sou, que não interessa mesmo. O que interessa é onde vou.
Vou a Algés apanhar o comboio para a praia de Carcavelos. Porque hoje levantei um corpo que tinha uma carta propositadamente embrulhada em plástico grosso para resistir os 5 anos da praxe. Na carta apenas um “Carcavelos, 1980” e um pó que em tempos foi uma margarida. Estava lá nesse dia.
Hoje não veio. Levantei o corpo sozinho. Sozinho mais o representante da Câmara que me instruiu para o fazer seguir para “aquele lado”.
Este novo representante é um moço novo. Este sim, um verdadeiro “cara de cu”. Destruído dia a dia pelo trabalho que não gosta, queixa-se todos os dias dos estudos que fez, do que estava destinado a ser, para ali abandonado junto a um coveiro palerma que fala com os mortos.
Hoje não veio mas lembro-me muito bem dela. Vi-a por a carta e a margarida num saco muito grosso e perguntou-me se aquilo ia resistir 5 anos. Acenei-lhe que sim.
Ao contrário do que o Cara de Cu pensa a carta não foi para o outro lado com as ossadas. Roubei-a e levo-a para a ler. Foi ela que me pediu.
- Isto resiste 5 anos, meu senhor?
- Resiste sim, minha senhora.
- De hoje a 5 anos não vou estar cá. Pegue nela, leia-a e destrua-a.
- Minha senhora…
Tal como num filme, daqueles detestáveis com mulheres enigmáticas, ela pediu-me segredo. E eu guardei.
E agora cumpro a sua promessa. O que eu não esperava era uma avaria no autocarro em plena Estrada da Circunvalação. Meia Hora, que raios! Mas está bem. Não tenho propriamente uma mulher quente (ou até uma fria, que agora também dava jeito) à minha espera…
Wednesday, 17 September 2008
Cândida II
Começaram a sair numa paragem antes da dela e fazer o resto do caminho a pé.
- Porque é que olhaste para mim? Não sou burra. Nem cega. És giro, mais velho. O que sou eu? Não me apetece nada ser uma daquelas do cinema, tipo, aposta ou isso.
- Não sei. A sério. Não sei. Os teus olhos, curiosidade. Isso agora não importa, pois não?
O prazer que sentia com ele era bom. Melhor, pensava sempre. Melhor que bom. Fez um esforço em continuar cândida porque todos agora viam um brilho nos olhos, um sorriso nos lábios, uma alegria no andar. ainda assim, não sabe porquê, nunca se encontraram com amigos. "Por enquanto não", pedia ela.
José, por seu lado, pareceu-lhe compreensivo e paciente.
- Vou ensinar-te o romantismo. - disse um dia com um grande ramos de flores e um cartão
"Se me amas, sorri. Se não, devolve-me, por favor, que tenho mais a quem dar"
É evidente que não conseguiu conter o sorriso mas devolveu-lhe o cartão com "pode ser que precises dele mais tarde". Ele olhou-a e enfiou o cartão no bolso.
- Porque é que ainda não dissestes que me amas?
- Porque ainda não sei se te amo. Estou a ser muito feliz contigo mas não sei se é amor ainda.
Se ela o amava? Como não poderia amar? E também vaidade. Sim, vaidade. Ela, de figura plana, amava passear-se no Fonte nova ao lado dele, alto e magnífico. Ela, experiente apenas nas experiências pessoais, amava os sentimentos e recantos que ele lhe mostrava. Sentia vaidade em ter um namorado assim. Dizê-lo assim declaradamente não conseguia, não para já.
Um dia passaram em frente de uma loja de cofres.
- É aqui que trabalho. - disse ele. - monto cofres. Não é grande coisa, mas dá para pagar as contas.
Cofres? Sorriu.
- O que foi?
Beijou-o.
- Preciso ir para casa estudar.
- Fica mais um pouco, vá. Tens sempre que estudar, estudar. - abraçou-a - vamos lá dentro. Eu tenho a chave...
Desprendeu-se do abraço e insistiu.
- Não posso, a sério. Vemo-nos no Sábado.
- Sábado? Por favor, Cândida, hoje é Domingo! Vais ficar uma semana sem me ver?
- É difícil, confesso, mas tenho um trabalho para entregar na Sexta. Não vou conseguir. Desculpa.
- Mas na Quinta é dia dos namorados. Estava a pensar...
- Zé, não! E isso do dia dos namorados é parvoeira, não achas?
- Mostrar que amamos alguém não é parvoeira. Não para mim. Tenho pena que penses assim!
Afastaram-se zangados.
Pensou que já tinha feito asneira. Caminhou para casa com a sensação que não deveria ser tão desconfiada, tão "científica" e calculista. Um pouco de romantismo poderia ser bom. "Faço-lhe uma surpresa".
Trabalhou e estudou dia e noite e conseguiu terminar o trabalho Quarta à noite. De manhã passou pela faculdade e entregou-o. Seguiu para o Fonte Nova onde comprou na loja de prendas um postal enorme com corações. Escreveu "Amo-te" em letras enormes. Passa na florista e escolhe uma rosa com uma quadra "picante" e lamechas.
- Bom dia, menina, posso ajudar?
- Sim. Queria falar com José F..., por favor.
- Mas a menina quem é?
- A namorada.- sorriu enquanto corava.
O dono da loja ficou a olhar para ela com cara fechada. O sorriso profissional que tinha desvaneceu-se e tornou-se num ar zangado, frio.
Ela ficou sem perceber nada.
Mas não gostou.
- Porque é que olhaste para mim? Não sou burra. Nem cega. És giro, mais velho. O que sou eu? Não me apetece nada ser uma daquelas do cinema, tipo, aposta ou isso.
- Não sei. A sério. Não sei. Os teus olhos, curiosidade. Isso agora não importa, pois não?
O prazer que sentia com ele era bom. Melhor, pensava sempre. Melhor que bom. Fez um esforço em continuar cândida porque todos agora viam um brilho nos olhos, um sorriso nos lábios, uma alegria no andar. ainda assim, não sabe porquê, nunca se encontraram com amigos. "Por enquanto não", pedia ela.
José, por seu lado, pareceu-lhe compreensivo e paciente.
- Vou ensinar-te o romantismo. - disse um dia com um grande ramos de flores e um cartão
"Se me amas, sorri. Se não, devolve-me, por favor, que tenho mais a quem dar"
É evidente que não conseguiu conter o sorriso mas devolveu-lhe o cartão com "pode ser que precises dele mais tarde". Ele olhou-a e enfiou o cartão no bolso.
- Porque é que ainda não dissestes que me amas?
- Porque ainda não sei se te amo. Estou a ser muito feliz contigo mas não sei se é amor ainda.
Se ela o amava? Como não poderia amar? E também vaidade. Sim, vaidade. Ela, de figura plana, amava passear-se no Fonte nova ao lado dele, alto e magnífico. Ela, experiente apenas nas experiências pessoais, amava os sentimentos e recantos que ele lhe mostrava. Sentia vaidade em ter um namorado assim. Dizê-lo assim declaradamente não conseguia, não para já.
Um dia passaram em frente de uma loja de cofres.
- É aqui que trabalho. - disse ele. - monto cofres. Não é grande coisa, mas dá para pagar as contas.
Cofres? Sorriu.
- O que foi?
Beijou-o.
- Preciso ir para casa estudar.
- Fica mais um pouco, vá. Tens sempre que estudar, estudar. - abraçou-a - vamos lá dentro. Eu tenho a chave...
Desprendeu-se do abraço e insistiu.
- Não posso, a sério. Vemo-nos no Sábado.
- Sábado? Por favor, Cândida, hoje é Domingo! Vais ficar uma semana sem me ver?
- É difícil, confesso, mas tenho um trabalho para entregar na Sexta. Não vou conseguir. Desculpa.
- Mas na Quinta é dia dos namorados. Estava a pensar...
- Zé, não! E isso do dia dos namorados é parvoeira, não achas?
- Mostrar que amamos alguém não é parvoeira. Não para mim. Tenho pena que penses assim!
Afastaram-se zangados.
Pensou que já tinha feito asneira. Caminhou para casa com a sensação que não deveria ser tão desconfiada, tão "científica" e calculista. Um pouco de romantismo poderia ser bom. "Faço-lhe uma surpresa".
Trabalhou e estudou dia e noite e conseguiu terminar o trabalho Quarta à noite. De manhã passou pela faculdade e entregou-o. Seguiu para o Fonte Nova onde comprou na loja de prendas um postal enorme com corações. Escreveu "Amo-te" em letras enormes. Passa na florista e escolhe uma rosa com uma quadra "picante" e lamechas.
- Bom dia, menina, posso ajudar?
- Sim. Queria falar com José F..., por favor.
- Mas a menina quem é?
- A namorada.- sorriu enquanto corava.
O dono da loja ficou a olhar para ela com cara fechada. O sorriso profissional que tinha desvaneceu-se e tornou-se num ar zangado, frio.
Ela ficou sem perceber nada.
Mas não gostou.
Thursday, 11 September 2008
Cândida
Cândida, como o nome, olhou para o tecto naquela noite e viu outras coisas que não as pinturas holísticas.
Viu os dias que se passaram depois dAquele dia.
O pai reparou mas calou-se.
A mãe destrambelhada, puxa-a de lado enquanto lavam a loiça com areia.
- Quem foi?
- Mãe?
- Quem te roubou esse recato tão forçado que tinhas no olhar? Hoje vi-te nas folhas de chá que estivemos a ler, eu e a Conceição. As folhas mostraram-nos um rapaz bonito, louro...
- As folhas, mãe, mostraram-te o que a Conceição viu. Eu vi-a hoje ao pé do Fonte Nova. - sorriu. - Ela disse-te porque é que me encontrou no Fonte Nova?
- Hum. Pois. - fez o seu movimento típico de como quem espanta um mosquito, ou um cobrador de impostos, ou isso, abana a cabeça com os cabelos brancos, longos, e lindos como a Cândida os vê, e sorri. - conta tudo à tua velha mãe, vá.
- Deixa a miúda, miúda. - ri-se também o pai, enquanto entra na cozinha e abraça as duas - Cândida, Cândida, se tu soubesses as memórias que me trazes...
- Pai! - foge do seu abraço e ri-se - está bem. Tenho um namorado. Não quero falar de nomes, nem nada. Não é nada sério.
Os três riem-se.
Está sozinha agora e sozinha sorri. Cãndida, não como o nome, sente um vulcão de emoções.
Batem à porta. Alma e Conceição já dormem.
Depois de responder em voz baixa vê entrar a mãe, não tão destrambelhada nem tão sorridente. Levanta-se preocupada com "o que foi, mãe? Foi o Clemente? Mais um ataque de asma?" ainda mais baixinho para não acordar as irmãs. Laura, ou como é conhecida, Ainy, palavra apalaí para "ardente" - significado que, para embaraço de Cândida, é explicado a todos que cruzam com a família. Mesmo todos. Professora Primária incluída... - abanou negativamente a cabeça.
- Não foi só a Conceição que viu umas coisas - encolheu os ombros - bem, não viu mesmo nas folhas... o que eu quero dizer é que eu também vi. Uma parede, um cofre, um segredo. Não percebi muito bem... mas deve ser mais uma daquelas "coisas" palermas que vejo.
Cândida, agora filha pequena de Ainy, abraça-a com carinho. Esta afaga-lhe os cabelos e não consideram mais o assunto.
Ainy porque também "anteviu" o fim do mundo pelo menos 3 vezes.
Cândida porque acredita na ciência, nas leis da natureza e nos olhos verdes e profundos de José.
Viu os dias que se passaram depois dAquele dia.
O pai reparou mas calou-se.
A mãe destrambelhada, puxa-a de lado enquanto lavam a loiça com areia.
- Quem foi?
- Mãe?
- Quem te roubou esse recato tão forçado que tinhas no olhar? Hoje vi-te nas folhas de chá que estivemos a ler, eu e a Conceição. As folhas mostraram-nos um rapaz bonito, louro...
- As folhas, mãe, mostraram-te o que a Conceição viu. Eu vi-a hoje ao pé do Fonte Nova. - sorriu. - Ela disse-te porque é que me encontrou no Fonte Nova?
- Hum. Pois. - fez o seu movimento típico de como quem espanta um mosquito, ou um cobrador de impostos, ou isso, abana a cabeça com os cabelos brancos, longos, e lindos como a Cândida os vê, e sorri. - conta tudo à tua velha mãe, vá.
- Deixa a miúda, miúda. - ri-se também o pai, enquanto entra na cozinha e abraça as duas - Cândida, Cândida, se tu soubesses as memórias que me trazes...
- Pai! - foge do seu abraço e ri-se - está bem. Tenho um namorado. Não quero falar de nomes, nem nada. Não é nada sério.
Os três riem-se.
Está sozinha agora e sozinha sorri. Cãndida, não como o nome, sente um vulcão de emoções.
Batem à porta. Alma e Conceição já dormem.
Depois de responder em voz baixa vê entrar a mãe, não tão destrambelhada nem tão sorridente. Levanta-se preocupada com "o que foi, mãe? Foi o Clemente? Mais um ataque de asma?" ainda mais baixinho para não acordar as irmãs. Laura, ou como é conhecida, Ainy, palavra apalaí para "ardente" - significado que, para embaraço de Cândida, é explicado a todos que cruzam com a família. Mesmo todos. Professora Primária incluída... - abanou negativamente a cabeça.
- Não foi só a Conceição que viu umas coisas - encolheu os ombros - bem, não viu mesmo nas folhas... o que eu quero dizer é que eu também vi. Uma parede, um cofre, um segredo. Não percebi muito bem... mas deve ser mais uma daquelas "coisas" palermas que vejo.
Cândida, agora filha pequena de Ainy, abraça-a com carinho. Esta afaga-lhe os cabelos e não consideram mais o assunto.
Ainy porque também "anteviu" o fim do mundo pelo menos 3 vezes.
Cândida porque acredita na ciência, nas leis da natureza e nos olhos verdes e profundos de José.
Cândida
Cândida era pequena e roliça. Face redonda, cabelo escorrido da cor dos olhos, castanhos, normais. Era a mais velha de sete irmãos. Cândida, Alma, Clemente, Conceição, Serena, Salvador, Vitória. Todos baptizados com nomes indicativos de momentos “fascinantes” das respectivas concepções (devidamente explicadas em idade própria). Ah! É melhor explicar. Cândida era filha de, por palavras dos próprios, um hippie inveterado e de uma destrambelhada de primeira. Love, peace e essas coisas.
A Cândida, dizia a mãe, condicionada pelo nome, era… cândida. Calma, pacífica, despercebida. Aquela a quem ninguém se lembra de ver. A que fica sozinha nas festas. A que se senta na mesa dos pequeninos porque ninguém se lembrou de lhe marcar lugar.
As histórias familiares incluíam deixá-la numa prateleira de uma loja, e outras peripécias contadas entre gargalhadas dos pais, a bem da verdade, nunca jocosas mas antes carregadas de carinho. E também Cândida, dizia a mãe, condicionada pelo nome… não se importava.
Viu-o pela primeira vez no autocarro, a caminho da faculdade. Ela, cândida como o nome, de anorak gordo e cabelo grosseiramente preso num rabo-de-cavalo, parecendo ainda mais nova, ele, garboso, louro, cabelo com axe, olhos verdes.
Era evidente, para ela, que ele não a viu. E porque veria? Pouco dada à exuberância da família, tinha optado, há muito, pela discrição e humildade.
Foi assim durante muito tempo. Tanto que ela deixou de se importar. A sua feminilidade, surgida num meio tão sexualmente free e exuberante tinha sido, por deficiência de formação, cientificamente explorado. Estudou, apesar de só, os recantos e os sentimentos e achava ela que tinha conseguido, como um soldado disciplinado, controlar e esconder sob a capa do recato, a fogosidade descoberta e apreciada.
Um dia, sentada no lugar do costume, com um livro, como costume, no colo, sentiu-o, mais do que viu, sentar-se ao seu lado.
- Olá. Chamo-me José.
- Olá. – levantou os olhos do livro e viram-se directamente, assim tão próximo, pela primeira vez. Sentiu-lhe o cheiro da colónia misturado com o odor do axe. Não lhe disse o nome porque não lhe ocorreu que ele o quisesse saber. Com este olá despiu-o lentamente e esqueceu-se do recato. Esqueceu-se de ser cândida, como o nome, e beijou-lhe a barba com cada letra do seu nome.
- Já nos cruzamos há muito tempo. Vejo-te todos os dias quando entras no autocarro.
Levantou os olhos do livro que tentara retomar.
- Chamo-me Cândida. – desta vez aguentou o olhar.
Em plena Estrada da Circunvalação o autocarro avaria. O condutor, pesaroso, levanta-se e avisa os passageiros enquanto abre as duas portas:
- Meus senhores, este autocarro está avariado. Desçam, por favor, e aguardem o próximo autocarro que passa daqui a meia hora.
Olharam-se e sorriram.
Meia hora inteira.
A Cândida, dizia a mãe, condicionada pelo nome, era… cândida. Calma, pacífica, despercebida. Aquela a quem ninguém se lembra de ver. A que fica sozinha nas festas. A que se senta na mesa dos pequeninos porque ninguém se lembrou de lhe marcar lugar.
As histórias familiares incluíam deixá-la numa prateleira de uma loja, e outras peripécias contadas entre gargalhadas dos pais, a bem da verdade, nunca jocosas mas antes carregadas de carinho. E também Cândida, dizia a mãe, condicionada pelo nome… não se importava.
Viu-o pela primeira vez no autocarro, a caminho da faculdade. Ela, cândida como o nome, de anorak gordo e cabelo grosseiramente preso num rabo-de-cavalo, parecendo ainda mais nova, ele, garboso, louro, cabelo com axe, olhos verdes.
Era evidente, para ela, que ele não a viu. E porque veria? Pouco dada à exuberância da família, tinha optado, há muito, pela discrição e humildade.
Foi assim durante muito tempo. Tanto que ela deixou de se importar. A sua feminilidade, surgida num meio tão sexualmente free e exuberante tinha sido, por deficiência de formação, cientificamente explorado. Estudou, apesar de só, os recantos e os sentimentos e achava ela que tinha conseguido, como um soldado disciplinado, controlar e esconder sob a capa do recato, a fogosidade descoberta e apreciada.
Um dia, sentada no lugar do costume, com um livro, como costume, no colo, sentiu-o, mais do que viu, sentar-se ao seu lado.
- Olá. Chamo-me José.
- Olá. – levantou os olhos do livro e viram-se directamente, assim tão próximo, pela primeira vez. Sentiu-lhe o cheiro da colónia misturado com o odor do axe. Não lhe disse o nome porque não lhe ocorreu que ele o quisesse saber. Com este olá despiu-o lentamente e esqueceu-se do recato. Esqueceu-se de ser cândida, como o nome, e beijou-lhe a barba com cada letra do seu nome.
- Já nos cruzamos há muito tempo. Vejo-te todos os dias quando entras no autocarro.
Levantou os olhos do livro que tentara retomar.
- Chamo-me Cândida. – desta vez aguentou o olhar.
Em plena Estrada da Circunvalação o autocarro avaria. O condutor, pesaroso, levanta-se e avisa os passageiros enquanto abre as duas portas:
- Meus senhores, este autocarro está avariado. Desçam, por favor, e aguardem o próximo autocarro que passa daqui a meia hora.
Olharam-se e sorriram.
Meia hora inteira.
Tuesday, 15 April 2008
Olhos Castanhos - 2
- Nasci numa casa com 9 irmãos… e mais alguns espalhados por aí.
- Espalhados, 'vó?
- Espalhados porque já não viviam comigo.
- Casaram?
- Não,… não sei. Foram-se embora. Fugiram à pobreza. Fugiram aos meus pais. Como eu fiz.
- Oh, 'vó! Que triste!
Olho-te. Os teus olhos são iguaizinhos aos de uma certa menina que eu fui.
- Não foi triste partir… foi triste ficar tanto tempo. – deitas a cabeça nos meus joelhos. És a primeira pessoa a quem eu conto isto.
- Não te esqueças do que te vou contar.
- E porquê, 'vó?
- Porque o esquecimento faz-nos repetir os erros. Se aprenderes com os meus, pode ser que não tenhas que sofrer tanto.
Baixaste os olhos. Aprende desde já, minha bisneta. Baixa os olhos sempre que quiseres esconder qualquer coisa. Baixa os olhos quando te zangares. Baixa os olhos quando engolires o orgulho, a raiva ou a inveja.
- Não consigo, 'vó. Não consigo aprender. Ainda ontem…
Pus-te os dedos nos lábios. Não quero que me contes. Não quero saber das vezes que esses meus olhos teus te provocaram castigos. E engoliste um suspiro.
- Porque saíste de casa? Não gostavas dos pais?
- Não gostava da miséria. Como te disse, éramos 9, mais os meus pais. Mas não tínhamos terra, nem animais, nem nada. Vivíamos de esmolas. O meu pai levava-nos para a beira da estrada pedir. Fiquei farta daquilo. Quando crescíamos, deixávamos de ter graça… já ninguém nos dava esmola. O remédio era roubar nas quintas ou servir. Fui para a beira da estrada e pedi que me levassem para Lisboa. Encontrei uma casa muito, muito bonita e pedi trabalho. E foi assim!
- Conta-me o resto, 'vó!
Beijo-te.
- Agora vamos dar de comer às meninas. Olha para elas…
As galinhas estavam displicentemente espalhadas pelo quintal. Quando 'Vó e bisneta se levantaram dos degrauzinhos que separava a casa do quintal as meninas souberam que era hora da paparoca.
'Vó e bisneta chamaram-nas e afagavam-nas enquanto despejavam a mistura nos comedouros.
- Espalhados, 'vó?
- Espalhados porque já não viviam comigo.
- Casaram?
- Não,… não sei. Foram-se embora. Fugiram à pobreza. Fugiram aos meus pais. Como eu fiz.
- Oh, 'vó! Que triste!
Olho-te. Os teus olhos são iguaizinhos aos de uma certa menina que eu fui.
- Não foi triste partir… foi triste ficar tanto tempo. – deitas a cabeça nos meus joelhos. És a primeira pessoa a quem eu conto isto.
- Não te esqueças do que te vou contar.
- E porquê, 'vó?
- Porque o esquecimento faz-nos repetir os erros. Se aprenderes com os meus, pode ser que não tenhas que sofrer tanto.
Baixaste os olhos. Aprende desde já, minha bisneta. Baixa os olhos sempre que quiseres esconder qualquer coisa. Baixa os olhos quando te zangares. Baixa os olhos quando engolires o orgulho, a raiva ou a inveja.
- Não consigo, 'vó. Não consigo aprender. Ainda ontem…
Pus-te os dedos nos lábios. Não quero que me contes. Não quero saber das vezes que esses meus olhos teus te provocaram castigos. E engoliste um suspiro.
- Porque saíste de casa? Não gostavas dos pais?
- Não gostava da miséria. Como te disse, éramos 9, mais os meus pais. Mas não tínhamos terra, nem animais, nem nada. Vivíamos de esmolas. O meu pai levava-nos para a beira da estrada pedir. Fiquei farta daquilo. Quando crescíamos, deixávamos de ter graça… já ninguém nos dava esmola. O remédio era roubar nas quintas ou servir. Fui para a beira da estrada e pedi que me levassem para Lisboa. Encontrei uma casa muito, muito bonita e pedi trabalho. E foi assim!
- Conta-me o resto, 'vó!
Beijo-te.
- Agora vamos dar de comer às meninas. Olha para elas…
As galinhas estavam displicentemente espalhadas pelo quintal. Quando 'Vó e bisneta se levantaram dos degrauzinhos que separava a casa do quintal as meninas souberam que era hora da paparoca.
'Vó e bisneta chamaram-nas e afagavam-nas enquanto despejavam a mistura nos comedouros.
Monday, 14 April 2008
Olhos Castanhos

A casa, ou melhor, o casarão, era enorme.
A partir do portão grande e belo virou à direita procurando a entrada de serviço. Viu um senhor com uma grande cesta de verduras enconstado a um gradeamento. Esperou que a criada viesse atender.
- Oh, Ti Manel! Como está?
- Dona Quinita, como está Vossemecê? Aqui estão as couves para a Senhora.
Continuaram a falar alegremente enquanto ela esperava meio escondida. De repente viram-na.
- Que queres tu daqui? - disse com voz rude o Ti Manel.
- Chega-te cá, miuda. - disse Dona Quinita.
Muito, muito a medo ela aprouximou-se. Sabia que estava suja e de roupa rasgada. Tinha fome e frio. Tentou sorrir, mas o sorriso não saía.
- Senhora, será que tem algum trabalho que uma mulher possa fazer? Vossa Mercê pode confiar em mim. Sou de confiança.
Dizia isto enquanto se aproximava de cabeça baixa.
- Afasta-te, malcheirosa! - vociferou Ti Manel - Oh, Dona Quinita, não confie nestas andrajosas! Vê-se logo o que querem. Roubar, é o que lhe digo! Roubar!
Olhou-o tentando esconder a amargura.
-Veja só, Dona Quinita... como me mata com o olhar!
- Cale-se, homem! Não vê que a garota está assustada? O que sabes fazer? Sabes cozinhar?
- ... não. Sou forte. Posso carregar o que quiser. Posso limpar os penicos (risos dos outros dois)... posso fazer o que quiser!
- É mesmo tonta esta! E tu lá achas que nesta casa se usa penicos? Achas que isto é a barraca de onde vens?
- Não, senhor! Achei que era o chiqueiro onde o senhor morava! - arrependeu-se. Baixou os olhos. Levou uma estalada do homem que a fez cair.
-Ti Manel, por Deus! - disse aflita D. Quinita.
Levantou-a e olharam-se. D. Quinita disse baixinho:
- Não digas mais nada. Afasta-te e espera este nhurro ir-se embora. - mais alto - Vai-te embora! Não tenho trabalho para ti!
Afastou-se. Depois de muita conversa Ti Manel afastou-se. Esperou que D. Quinita a procurasse com o olhar.
- Chega-te cá! Tens o lábio a deitar sangue.
Levou-a para os fundos da casa. Deu-lhe um pano molhado para limpar a ferida.
- Tens cá uma língua, tu!
Ela levantou os olhos.
- E também olhos malvados! - riu-se - ainda te dão desgostos esses olhos. - Queres trabalho? Posso deixar-te limpar o fogão e os penicos... Aqui chamam-se bordalosas... E um aviso. Fecha-me essa boca e baixa-me esses olhos. Como te chamas?
- Maria José.
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