Wednesday 12 September 2007

E tudo porque chove...

A chuva!

O Verão acabou.

A chuva traz-me as recordações mais queridas.

Cresci num bairro operário de Lisboa. Não digo o nome. Não só porque mantenho a política de me manter o mais anónima possível mas também porque ele já não existe. O nome ainda lá está e ainda é (e muito) habitado. Mas não é o meu bairro.
Ruas pequenas, sem trânsito. Casas pequenas com quintal. Brincadeiras durante o Verão todo.

Era durante o Verão que as senhoras faziam as grandes limpezas. Tapetes estendidos, batidos. Estendiam-se na calçada e despejavam-se baldes de água cheia de sabão ou detergente JUÁ. As crianças eram chamadas para andarem por cima dos tapetes e sová-los. Detergente e muita água, pulos, escorregadelas.

As vendedeiras de limões, tremoços, flores, rebuçados; o vendedor de algodão e o amolador (que trazia sempre a chuva, coitado). A roupa era colocada a corar.

Os gritos
- Oh vizinhas está a chover!!
A roupa era apanhada a correr entre brincadeiras porque as primeiras chuvas serviam de muita brincadeira, correria e eram seguidas dum leitinho com chocolate quentinho e uma carcaça com manteiga passada a ferro.

As avós viviam ali mesmo ao lado. Os tios e os primos também.

Era também no Verão que as casas eram arranjadas. Os homens juntavam-se para refazer o chão, ou mudar as telhas, ou pintar as fachadas. Tudo em troca de uma sardinhada ou febras, ou coratos (hum!!!)

À noite era a altura das desgarradas de fado, anedotas, jogos de cartas pela noite dentro.

Na altura das pinhas lá havia um pai que ía connosco ao pinhal com um carrinho de mão. Apanhávamos imensas pinhas para depois as assar numa grande fogueira na rua.

Não me lembro de alguma vez ver um almeida ali na rua. Eram as mães que despejavam baldes cheios de água e esfregavam as pedrinhas sempre brancas, e os pais abriam as sargetas para as limpar das folhas e lixo.

As primeiras chuvas traziam o conforto de lençóis fofos com cheiro a alfazema ou eucalipto. Um aconchego e pequeno almoço na cama a ouvir as gotinhas a bater mesmo ali na janela.

E o cheiro de terra molhada.

Não era, de facto, tudo perfeito. A pobreza vivia mesmo ali ao lado. Quando não queria comer a sopa (acontecimento, vamos lá, diário) a mãe não falava dos meninos de África. Eram os netos da Ti Hermínia. A filha Dora era "esquisita" (naquela altura as mães eram, quando muito, esquisitas...) e vinha, literalmente, despejar filhos a casa da Ti Hermínia que íam herdando as nossas roupas e brinquedos.

Muitas mães e pais trabalhavam em fábricas ali perto e quando uma delas fechou algumas famílias ficaram sem qualquer meio de susbsistência.

Como a D. Marta e o Senhor José, amigos de infância dos meus pais.
Tinham 3 filhas. A mais velha deixou a escola e foi trabalhar a dias. A mais nova foi para os padrinhos. A Xana, que tinha a minha idade, veio para minha casa.

O Senhor José não aguentou o desgosto e começou a beber. A mãe e a D. Marta falavam baixinho. A D. Marta chorava. Nós bricávamos no meu quarto e não nos era permitido entrar na sala, para não vermos a mãe da Xana chorar.
Um dia, o pai chamou o Senhor José lá a casa... foi a primeira vez (talvez a única) que vi (escondida na janela da rua) dois homens enormes chorar.

Mas a primeira chuva, depois de um Verão de calor que as telhas não protegiam, era o anúncio do Outono. E no Outono é a estação dos meus anos. Do início da escola. Das sopas de café com leite da avó. E o cheiro da terra molhada.

E tudo porque chove...

E porque as ruas que percorri hoje não cheiram a terra molhada. Cheiram a xixi e lixo.

No entanto, para as minhas crias, a primeira chuva foi feliz.

A trovoada de ontem serviu de festa e a contagem do intervalo entre o relâmpago e o trovão foi motivo de grande risota.

O caldinho verde, sopa proibida durante o Verão, foi comido ainda a deitar "fuminho".

Os edredons foram colocados ontem pela primeira vez. Não cheiram a folhas de alfazema e eucalipto secas.
Mas as crias suspiraram de prazer pelo aconchego.
- Hum, que bom, mãe!
- Obrigado, mãe!

Será que para as minhas crias também a primeira chuva trará, daqui a uns anos, lembranças ternas?
Parece que sim.
Tomara que sim!!

Um bom dia de chuva para todos.

2 comments:

CPrice said...

..bonito este quadro minha amiga .. e de facto com as coisas simples relembram recordações simples e assim de forma simples também as sabes transmitir .. :)

.. lá pelos meus lados foi mais de dedo nos ouvidos e beiço de receio (risos)

Beijinho

nocas verde said...

Estou para aqui a pensar no que responder,
fugir ao obrigada que sai assim sem mais nem menos pela boca fora
e porque sabes que esta verde raramente diz coisas da boca para fora
e porque os neurónios só conseguem coisas simples (ainda para mais a estas horas, rstrsrs) aqui vai um muito original
OBRIGADA