Monday 10 November 2008

O dia vai longo e gosto do que faço. Se fosse novo, como alguns dos gaiatos que daqui expulso, dizia que era gótico. Porque gosto da morte. Não gosto que as pessoas morram, não gosto de ver os seus rostos enquanto aguardo a minha vez de entrar em cena, mas gosto de todo o resto.

Gosto de andar por aqui e ouvi-los falar.
Não pensem que sou louco, não os oiço, oiço falar, mas imagino-os falar a partir dos funerais que têm e das campas que lhes constroem.

O que faço eu aqui? Levanto campas. Só isso. Nada de mais, sem misticismo nenhum, sem pesar nem derrotismos. Não sou daqueles que queriam ser isto ou aquilo e acabam para aqui largados, “caras de cus” sem eira nem beira.

Também não sou um errante ou artista ou até – como dizem também os gaiatos – um vampiro que bebe o sangue dos corpos, mais ou menos como um guloso que trabalha numa pastelaria. Se eles soubessem, seria mais parecido um guloso trabalhar numa loja de parafusos.
É que os mortos, quando para aqui vêem estão limpos de sangue. Se fosse vampiro não era por aqui que me safava, não.

O que sou, afinal? Isso é outra história. Fui o que fui, pode não interessar, que provocou o que sou, que não interessa mesmo. O que interessa é onde vou.

Vou a Algés apanhar o comboio para a praia de Carcavelos. Porque hoje levantei um corpo que tinha uma carta propositadamente embrulhada em plástico grosso para resistir os 5 anos da praxe. Na carta apenas um “Carcavelos, 1980” e um pó que em tempos foi uma margarida. Estava lá nesse dia.
Hoje não veio. Levantei o corpo sozinho. Sozinho mais o representante da Câmara que me instruiu para o fazer seguir para “aquele lado”.
Este novo representante é um moço novo. Este sim, um verdadeiro “cara de cu”. Destruído dia a dia pelo trabalho que não gosta, queixa-se todos os dias dos estudos que fez, do que estava destinado a ser, para ali abandonado junto a um coveiro palerma que fala com os mortos.
Hoje não veio mas lembro-me muito bem dela. Vi-a por a carta e a margarida num saco muito grosso e perguntou-me se aquilo ia resistir 5 anos. Acenei-lhe que sim.
Ao contrário do que o Cara de Cu pensa a carta não foi para o outro lado com as ossadas. Roubei-a e levo-a para a ler. Foi ela que me pediu.
- Isto resiste 5 anos, meu senhor?
- Resiste sim, minha senhora.
- De hoje a 5 anos não vou estar cá. Pegue nela, leia-a e destrua-a.
- Minha senhora…
Tal como num filme, daqueles detestáveis com mulheres enigmáticas, ela pediu-me segredo. E eu guardei.
E agora cumpro a sua promessa. O que eu não esperava era uma avaria no autocarro em plena Estrada da Circunvalação. Meia Hora, que raios! Mas está bem. Não tenho propriamente uma mulher quente (ou até uma fria, que agora também dava jeito) à minha espera…

2 comments:

Luísa A. said...

Uma história (terá continuação?) estranha, um pouco assustadora, Nocas… Que me faz pensar como é bom que haja gente de todos os géneros e para todos os gostos, capaz, inclusivamente, de ter esse tipo de profissão.

nocas verde said...

Querida Luísa,
não se assute, que o senhor é boa gente!
Continuação terá, garanto-lhe.
obrigada e beijo