Monday 18 May 2009

D. Paula

Um dia conheci-a. Triste. Olhos mortiços.

Fui apanhada na curva da vida, dizia-me.
Ao contrário da minha própria mãe, por exemplo, vi-lhe quase sempre uma expressão alegre, voluntariosa. Amava os filhos e o marido, amava a vida e o que vivia... ou assim pensava eu.

A filha era minha conhecida. Conhecida porque não a considerava bem minha amiga. Era caprichosa. E mimada. Achava eu.

Um dia, tinha perto de quinze anos, fui lá a casa. Gostava da D. Paula eu.

A filha não estava.

Gostava de mim a D. Paula. Achou-me uma mulherzinha e deu-se, nesse dia, por entre chávenas de chá, a minha primeira conversa de mulherzinha.

Não nasci para ter marido, atirou assim. Nem filhos. Nasci para viver sozinha, para estar sozinha.

Casar, ter os meus filhos, contentar-me com um emprego de porcaria, uma vida de porcaria. Foi um erro. Foi tudo um erro.

E sabes o pior? Criei dois monstros! Criei um marido que se acha o melhor. Porquê? Porque lhe digo isso todos os dias. Os meus filhos? Porque os amo mais que tudo, mais que a vida. Porque os convenço que somos todos maravilhosos. E quem me convence a mim? Quem me diz que sou boa? Ninguém. Porque não sou, sabes.

Fiquei estarrecida. Tanta confiança me demonstrava. A mim, sempre tão medrosa e insegura e estupidamente modesta.

Não me olhes assim minha querida, vendo-me de chávena parada no ar. É verdade. Construo a mentira para todos e sou muito convincente nisso.

A verdade, minha querida, é que não nasci para ser casada. Não nasci para ser mãe. Não nasci para viver com gente.

Eu merecia uma vida melhor. Eu merecia um marido melhor e uns filhos melhores.

Mas também os meus filhos e o meu marido mereciam alguém melhor.

A conversa não acabou com grandes conselhos sobre a minha vida ou o meu futuro, porque não tinha nenhuns.

Apenas foi a minha primeira conversa de cozinha... de mulherzinha. De um mundo que não conhecia. O da mentira piedosa. Da mentira que às vezes as mães, mulheres, heroínas, vencidas da vida, recorrem. Daquelas tão profundas, sabem?, que descobrimos que não podemos contar a ninguém. Sem querer, tornei-me amiga daquela colega – confesso – para poder estar mais próxima da D. Paula. E depois confesso também , tornei-me mis atenta s suas reacções. E vi-lhe, depois, só depois de já saber, tantas vezes os olhos trites que disfarçava sob o cansaço. O sorriso que escondia as lágrimas, o carinho solitário.

Um dia ganhei coragem e perguntei-lhe porque não se desfazia daquilo tudo? Porque não procurava uma vida melhor, que tinha direito, sabe?

Sei, minha querida, claro que sei. E sei também que não conseguiria. Esta casa, apesar de não saber, precisa de mim. Fui eu que criei esta situação. Fui eu.

E, depois, minha querida, se apenas por um dia, um minuto, alguém descobrir que eu sou miseravelmente infeliz, se alguém sequer desconfiar, vai tornar inútil todo estes anos de fingimento e de dor atroz, não achas?

Concordei com ela.

De todos os que me afastei quando mudei de casa foi a D. Paula de quem senti mais falta.

Convidei-a para o meu casamento e fui a única que percebi porque chorou tanto. E não disse a ninguém.

Porque conto isto hoje?

Porque ela mudou-se de terra, o marido deixou-a, disse que achou alguém mais novo mas não melhor, os filhos estão também casados e cada um com a sua vida,

ela?

Disse-me que estava sozinha, de olhos sorridentes. Finalmente sozinha… e foram as palavras mais felizes que lhe ouvi alguma vez dizer.

Porque o nome é inventado.

Porque lhe pedi.

Podes escrever sim. Mas não te preocupes, disse-me. A minha história é tão mirabolante que ninguém acreditará nela. Dirão todos que é mais uma daquelas tuas histórias.

6 comments:

Ka said...

Uma história bem real e mais comum do que se possa pensar...

Conheço algumas D. Paulas...e algumas ainda bem novas e já com essa angustia...porque razão ficam as pessoas a viver vidas onde não são felizes?

Boa semana
Beijinho

nocas verde said...

Nunca pensei que fosse tão comum, Ka. Mas é, sim. Porquê? Porque acham que devem. Porque sentem que é sua obrigação. Não sei.
Boa semana, também, Ka.
Beijinho

drengo said...

há pessoas que dão tudo de si aos outros, e muitas vezes para quem vive apenas para si próprio.

felizmente, essa d. paula teve a sua oportunidade, e está (finalmente) feliz: isso é o que importa.

uma boa semana para si e para os seus, nocas.
j.

nocas verde said...

Foi isso mesmo que me alegrou, caríssimo.
Finalmente teve a sua oportunidade.
Uma boa semana também por aí.
beijinho

CPrice said...

"tudo um erro" ?
Acho que jamais conseguirei pensar desta forma .. ainda que os cometa. ainda que arque com as respectivas consequências .. ainda que.

:) boa semana minha amiga.

nocas verde said...

querida amiga,

se fosse hoje essa conversa, talvez lhe dissesse isso mesmo. que não podia ter sido tudo um erro. que haveria ainda mais por fazer, para mudar, para melhorar, sei lá.
Mas na altura fiquei apenas pasmada com a diferença entre o que "mostrava" (sinceramente mostrava) e o que sentia, presa naquele embrulho de mentiras e erros auto infligidos.
Agora?
Acho que os erros, a serem feitos (e são-no) devem ser admitidos and work from there...
...por um dia seguinte melhor.
boa semana, minha querida :)