Friday, 22 May 2009

(visitem a 1.ª parte... ou não)

Cumpro a promessa?
Faço um desvio na promessa, isso sim. Depois do Cara de Cu se ir embora, resmungando um até amanhã indecifrável, não soubesse eu que era o que me dizia todos os dias que havia levantamentos, arrumo as minhas pás e saio do cemitério.
Não gosta de nada, detesta os levantamentos. Eu? É a parte final de um trabalho sem fim.
Vejo as pessoas que mudam. É verdade, sim. Conheço-as. Quando as conheço.

Muitos Caras de Cu e Filhos do diabo são levantados assim, tendo por companhia o coveiro e o representante resmungão da Câmara. Outros têm advogados cheirosos, executantes das heranças. Lembro-me da de ontem. Era menina quando lhe enterrei o pai. Esteve calada, séria, nem uma lágrima lhe vi. Veio sozinha, mulher feita. Puxei-a à parte antes do Cara de Cu chegar – diz-me que não tenho estudos, que a minha tarefa é cavar, que não posso e não devo falar com os familiares – e avisei-a. O seu pai não está pronto, menina. Não olhe. A menina-mulher agradece-me com o olhar, sabe do que falo apesar da leve interrogação no olhar.

Saio do autocarro. Afinal não era o meu mas o que vinha em sentido contrário e o condutor, amiguinho como é, decide parar também, tentar ajudá-lo. Ou isso ou é aquela estúpida camaradagem de colegas de trabalho. O que vale é que trabalho apenas com o meu querido Cara de Cu. A esse, levo-o sempre pelos caminhos melhores, cheios de lama, para que suje as belas calças vincadas. Já pensei no que faria caso caísse numa das covas.

O autocarro fica para ali encostado e decido ir à taberna de beira da estrada. Vejo os passageiros do outro, um casal de namorados, uma senhora bem vestida, duas ciganas carregadas de sacos, uma mãe com dois filhos irrequietos, um mecânico (devia ser, pelo fato macaco que trazia), três estudantes alemães e mais uns quantos que não saíram do autocarro, com medo que aquela má redondeza os comesse. Mas que raio de sítio este para o autocarro avariar!

Desviei-me da minha promessa?
Deveria ter lido e destruído.
E é o que vou fazer. Apenas não no cemitério. Vou a Carcavelos, à praia de Carcavelos. Sento-me na areia, leio a carta, rasgo-a e deito os restos na água juntamente com o pó da margarida.

Entro na taberna e inalo com gosto o cheiro maduro e bolorento do vinho nas pipas, enormes, deitadas atrás do balcão.
Peço um copo de três tinto, pago e sento-me num banco comprido, de madeira velha, suja e negra do vinho derramado.
Depois de o tomar de uma só vez, tiro o saco do bolso de dentro do casaco. Aliso-o e vejo de novo a letra feminina, redonda e perfeita
Carcavelos, 1980.

Mulher bonita. Pequena, roliça, saia travada, lábios vermelhos. Lágrimas que escorrem sem as segurar, soluço contido, sem dignidade.
Veio sempre às sextas-feiras.
Só às sextas-feiras.
Todas as sextas-feiras.

Na última avisei-a – vejam – que o levantamento estava marcado para a sexta-feira seguinte.
- Obrigada. Até sempre.

Hoje percebi o que queria dizer. Não veio.
Aliso o plástico, remexo no pó, enclausurado.
Porque não veio ela hoje?

A taberneira avisa-me que o autocarro está pronto a partir. Agradeço e saio. Tome cuidado, disse-me por entre benzimentos, roçando no sinal purulento na face. Está a ver o céu? Olho para onde aponta, por trás da serra do Monsanto, magnífica. Um raio de sol rompia no meio das nuvens, dando uma tez vermelha ao céu.
- Coisa boa não se anuncia, cruzes canhoto.
- Não tenha medo, Senhora. Sou eu que encomendo as almas ao inferno e hoje não é o seu dia.

6 comments:

Rita said...

Já li a 1ª e a 2ª e espero ansiosamente pela 3ª...
Jokas

nocas verde said...

Obrigada, Rita.
Cumprirei, sim.
beijinho e óptimo fim-de-semana para o reino dos R's :)

Luísa A. said...

Estou a gostar, Nocas! Mas tem de nos dizer rapidamente o que está escrito nessa carta, que não se aguenta este «suspense». ;-)

nocas verde said...

Querida Luísa, obrigada :)
Cumprirei, assim me permitam as frequências e os outros afazeres.
:)

Ka said...

Finalmente consigo ler as duas partes e estou aqui em "pulgas" para os desenvolvimentos :)

Para quando a 3º parte???

Beijinho

nocas verde said...

obrigada pelo "em pulgas"...

vem a caminho...
beijinho